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[Archport] O nome de Santarém.

Subject :   [Archport] O nome de Santarém.
From :   João de Castro Nunes <joaocastronunes@gmail.com>
Date :   Wed, 14 Jul 2010 01:38:55 +0100


O nome romano de Santarém
 
                                                
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         Falar de Santarém, em termos arqueológicos, leva-nos necessariamente à época romana, pois aí começa, a bem dizer, o seu percurso histórico por, segundo a tradição, ter sido a cabeça do conuentus scallabitanus, o qual, do primitivo nome do burgo, tirou a respectiva adjectivação.
         Se linguisticamente não há qualquer relação entre o seu primeiro nome conhecido, ou seja, Scallabis, pré-romano com toda a evidência, e o nome que, desde a Idade-Média, chegou aos dias de hoje, Santarém, o certo é que se trata inquestionavelmente do mesmo povoado, pese às muitas dúvidas que tem suscitado a sua localização.
         Por mim, estou plenamente convencido que a terra em que nos encontramos, Santarém, é a mesma que um dia se chamou Scallabis e, intermediamente, foi designada por Praesidium Iulium e Colonia Augusta Iulia.
         Para o tentar provar ou sequer defender este ponto de vista, não vou recorrer aos materiais arqueológicos propriamente ditos, os quais, nesta matéria, nada adiantam, em primeira análise, por muitos ou poucos que eles sejam; o mais que podem mostrar é que, em determinada época, a localidade foi mais intensamente ou menos intensamente povoada. Nada provam, no entanto, quanto à sua identificação. Esta haverá que partir, antes de mais, das fontes historiogáficas, escritas ou epigrafadas, e da sua correcta interpretação.
         Só então será a vez de os materiais arqueológicos fazerem ouvir a sua voz em abono ou desabono da tese ou teses em confronto, com base na sua abundância ou escassez e, bem assim, na sua pertinência ou falta dela.
 
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         Posto isto, comecemos por abordar sucintamente os critérios que presidiram à divisão administrativa do território hispânico, uma vez efectuada, no todo ou em grande parte, a sua ocupação pelo poder romano.
     É certo e sabido que, antes disso, a península ibérica era uma amálgama de povos e culturas da mais variada índole, cabendo a Roma a ingente tarefa de lhes conferir alguma unidade sob a designação genérica de Hispania.
         Dada, porém, a sua grande extensão em longitude, foi o território arbitrariamente dividido, para fins administrativos, em duas partes: a mais chegada a Roma e a mais distante, passando esta a designar-se por Ulterior, cujo governo coube a Júlio César, em 61 antes de Cristo, na qualidade de pretor.
         Desconhecendo-se em concreto o local exacto que lhe serviu de sede, há quem sugira, e muito bem, haver sido aqui, em Santarém, que ele estabeleceu o seu praetorium com base, mais que nada, na expressão Praesidium Iulium que textualmente lhe anda atribuída, suposição reforçada pela circunstância de estrategicamente o local se encontrar a meio da fachada atlântica a braços com recorrente agitação. Tudo parece jogar a seu favor.
         Neste contexto, que se vai manter até à época de Augusto, é prematuro para já entrar em linha de conta com a realidade virtual de uma Lusitânia ora situada a norte do Tejo até aos confins da Galiza, a Lusitânia estraboniana, ora a sul do Douro até à costa algarvia, a Lusitânia resultante da reorganização da uniuersa Hispania operada por Augusto e seu genro Agripa, uma vez obtida a sua total e definitiva pacificação por volta de 19 antes de Cristo.
         Esta é a Lusitânia que cumpre ter em mente para o enquadramento  das considerações a produzir no presente estudo sobre a denominação oficial romana da cidade actual de Santarém.
 
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         Perante uma região tradicionalmente insubmissa e susceptível de múltiplas e circunstanciais alianças, pondo em causa frequentemente a estabilidade pretendida pelo poder romano, foi genial a solução encontrada por Augusto para a dominar, ora desmembrando a apregoada camaradagem das suas populações, como dando-lhes um novo arranjo.
         E, assim, começando por fazer do rio Douro a fronteira entre os povos galaicos e os seus aguerridos irmãos de entre Douro e Tejo, juntou a estes os pacíficos turdetanos, formando com ambos a Lusitania histórica da fase imperial, aquela que ora nos interessa.
Pelo sim pelo não, em todo o caso, o avisado imperador tomou as suas precauções: para aquietar os galaicos, integrados na Tarraconense, pô-los sob a apertada vigilância de uma guarnição de elite, a Legio VII Gemina, implantada a leste, nas Astúrias, por forma a prevenir eventuais confabulações com os astures e os cântabros; e , para refrear o pendor belicoso do núcleo duro da restante família lusitana, sediada entre os rios Douro e Tejo, agrupou-os em nova província com populações de raiz tartéssico-turdetana familiarizadas com a paz em virtude da sua temporã romanização.
Assim nasceu a Lusitânia real, a Lusitânia romana, com a capital em Mérida, criada expressamente por Augusto para acantonar, em regime de colónia largamente favorecida, os  veteranos das campanhas que efectuou para a total e definitiva pacificação hispânica sob a tutela de Roma.
Foi genial, foi sábia a solução imposta por Augusto. Separada dos galaicos e espartilhada entre fronteiras naturais e a soldadesca vigilante instalada em Mérida com todas as regalias e obrigações de uma cidadania de pleno direito, bastião indefectível dos ideais romanos, como se outra Roma fosse, a nova e heterogénea comunidade “lusitana” entrou no bom caminho e, em muitos lances, partilhou com Roma os sucessos da sua imparável expansão.
         Uma vez assim constituída, a Lusitania repartiu-se em três conuentus, cujas capitais beneficiaram do invejável estatuto de colónias, muito embora outras cidades importantes gozassem, como municípios, de não menor prestígio e aceitação ante o poder romano. Era o caso, entre outras, de Lisboa e Évora. Só que a colónia, de base essencialmente militar no seu começo, era como um simulacro da própria Roma, que em cada uma delas se revia e sustentava.
         Com Mérida (Colonia Augusta Emerita) e Beja (Colonia Pax Iulia),               a cidade de Santarém foi a outra capital escolhida para cabeça de conuentus em função seguramente do seu papel nas lides cesarianas ou até antes, nos primórdios da ocupação. Do nome indígena, paleohispânico, tirou o conuentus obviamente o epíteto de scallabitanus. Mas,  que nome teve a sua capital na nomenclatura oficial romana ?…                  
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         Sem outras fontes de informação fiáveis, a resposta só pode ser dada pelo mutilado monumento epigráfico há anos encontrado na própria cidade e estudado, em primeira mão, pelo Prof. Doutor Justino Mendes de Almeida em colaboração com o Dr. Fernando Bandeira Ferreira (Rev. de Guimarães, vol LXXVI, 1966, pp. 27-3l), os quais, sapientemente, lançaram as bases da sua melhor interpretação.
         Só que há um ponto em que me permito discordar em absoluto. É   aquele em que se transfere para Mérida, capital da província, a referência à capital do convento escalabitano sob a forma onomástica de Colonia Augusta Iulia, um nome de prestígio a reaver.
         As fontes documentais são diversamente interpretáveis, mas não alteráveis, seja a que pretexto for. É uma regra de ouro da críttica dos textos. Se a letra que, no final das linhas 3 e 5 da inscrição, está gravada é claramente um I e não um imaginário E, como aliás os próprios autores não deixam de reconhecer (“… um traço vertical que deve ser o resto de um E, ainda que, tendo nós observado a inscrição primeiro de dia e depois de noite com luz rasante, não tivéssemos conseguido notar o menor vestígio de qualquer das barras.”), é sobre o indiscutível I que teremos de assentar as nossas reflexões, mesmo que elas nos conduzam a um beco sem saída. Mas tal não é o caso. E, assim sendo, as coisas mudam de figura. O que, de qualquer forma, está fora de questão é pretender-se ajustar o texto a critérios pessoais, apriorísticos, como se, em certa óptica, um E fosse preferível a um I.
         Posto isto, verifica-se que o monumento em apreço diz respeito a uma personagem, um concidadão, cujos bons ofícios à comunidade se cifram, para além do desempenho de um cargo de menor monta (praefectus fabrum), no exercício do duunvirato e, bem assim, do flaminado conventual e do provincial em torno do culto instituído em honra de uma dupla entidade imperial, não especificada, mas que, pela datação mais provável, deverá tratar-se de Cláudio e sua consorte ou familiar da sua  estirpe.
         No que não atino é com o esforço dispendido para, sem qualquer objectividade, fazer do monumento um elo de ligação com a capital da província, ou seja, a Colonia Augusta Emerita, quando na verdade nem o seu nome é referido na epígrafe, a não ser por suposição, nem institucionalmente é preciso recorrer a ela para contextualizar o percurso burocrático do homenageado. Não há que fantasiar nem, com equívoca orientação, alardear erudição sem cabimento.
         No mínimo é estranho que, tudo apontando para uma verosímil relação do monólito com a cidade onde foi achado e para onde, pelo seu peso e dimensões, não foi seguramente acarretado, no mínimo é estranho que se pense em esvaziá-lo do sentido que à cidade mais convém ou interessa, terçando armas por uma leitura indefensável e contrária ao mais elementar senso-comum.
         Em tal conformidade e atendo-me no mais à autorizada proposta de 1966, resta-me concluir, com toda a convicção, que a colónia romana instalada em Santarém, que originariamente se chamou Scallabis, recebeu oficialmente o nome de  Colonia Augusta Iulia, sem risco de onomasticamente se confundir com qualquer outra ainda que privada do cordão umbilical da sua matriz paleohispânica, não propriamente enjeitada, mas relegada para o uso vulgar, como no caso dos itinerários :   augusta, por mercê do seu fundador; iulia, em memória do praesidium cesariano que, porventura,  algum dia terá sido a cabeça da Ulterior.
 
 
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         Por ser este monumento, apesar de escalavrado, o mais importante documento escrito sobre a identidade romana de Santarém, que arqueologicammente se vai enriquecendo, dia após dia, com novos e valiosos testemunhos condizentes, não seria demais dar-se-lhe na cidade um lugar de realce em consonância com o nome de prestígio que, há cerca de dois mil anos, lhe foi atribuído pelos então senhores do mundo:
 
COLONIA AVGVSTA IVLIA
 
 
 
                                                                           João de Castro Nunes        
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João de Castro Nunes

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