Caro
Gonçalo,
De facto, Bruce Trigger
continua a ser muito mal conhecido. Cita-se a sua obra fundamental sobre
“História do Pensamento Arqueológico” (traduzida, aliás, para castelhano),
cita-se mais raramente o seu contributo inestimável enquanto biógrafo,
porventura o maior, de Vere Gordon Childe, mas quase nunca se cita o seu papel
na construção teórica. Trigger sempre foi um “mal amado” do establishment arqueológico americano,
especialmente da chamada “Nova Arqueologia” (“nova”, cerca de duas décadas
depois de já a Matemática, a Biologia, a Geografia, etc., bem como a
Antropologia e a História antes de todas, se terem a sim também chamado
“novas”). Sofreu com isso, aliás. Trigger, um dos grandes vultos do pensamento
arqueológico norte-americano, por ter sido sempre um defensor do paradigma
histórico para a Arqueologia, foi como que “exilado” no Canadá, onde leccionou e
teve de fazer pela vida. Mas vale muito a pena ler
os seus textos, nomeadamente a colectânea de artigos reunidos no livro que eu
citava antes: Bruce Trigger (1978) - Time
and Traditions: Essays in Archaeological Interpretation. Edinburgh:
Edinburgh University Press, 1978. A citação que eu fazia,
tirada de um desses artigos, foi por mim também referida no texto que tenho a
ousadia de reproduzir abaixo e deu nome ao volume em que foi incluído, volume de
co-autoria minha e do António Carlos Silva: A Linguagem das Coisas. Ensaios e Crónicas
de Arqueologia, Col. Forum da História, Publ. Europa-América, Lisboa,
1996. Perdoe-se a imodéstia, mas
como julgo que tal texto continua hoje a fazer sentido (pelo menos para mim faz
“todo o sentido”). Luís Raposo Longe
vai o tempo em que da Arqueologia se retinha apenas a ideia de um saber
antiquarista destinado a melhor servir a colecção de objectos antigos. Se,
enquanto arqueólogos e
parafraseando Sir Mortimer Wheeler, procurássemos apenas objectos mortos,
então “mais valia que tivéssemos escolhido outra profissão”, já que “a
Arqueologia morta é o pó mais seco que pode soprar”. Não nos movemos, pois,
pelas “coisas” que desenterramos, mas as “gentes” que temos a pretensão de saber
colocar por detrás delas. Será todavia que as nossas “coisas”, os objectos
arqueológicos, estão à altura de desempenhar o papel que esperamos delas?
Constituirão elas fontes de dignidade e/ou de natureza idêntica às “palavras” que tradicionalmente
alimentaram a pesquisa histórica ? Dito de outra forma e retomando uma velha
dicotomia: qual o estatuto e capacidade informativa de “monumentos” e
“documentos” ? Tradicionalmente,
a historiografia positivista não teve dúvidas em responder: a História, na
procura de factos (de “pequenos cubos de mosaico, bem distintos, bem homogéneos,
bem polidos”, como Lucien Febvre tanto gostava de ironizar), deveria aceitar com
humildade a sua função perpetuadora de memórias, através da decifração de
“palavras”, recolhidas por escrito. Sem documentos escritos não haveria
História, como enfaticamente fazia notar Fustel de Coulanges no final do século
passado. E foi no quadro deste ambiente conceptual que, na mesma ocasião, se
desenvolveu tanto uma “Pré-história”, entendida não apenas como período
histórico, mas principalmente como campo de estudos estruturalmente distinto da
História (muito mais ligado à Etnologia, ao estudo dos usos e costumes dos
“povos primitivos”, dos “povos sem história”), como uma “Arqueologia”, entendida
como “técnica auxiliar” (ou simples “criada de quarto”, com já houve quem lhe
chamasse) da História. Entretanto,
passou-se cerca de um século. Muita água correu sob as pontes da ciência
histórica. Sob o impacto da historiografia do pós-guerra, a oposição
“documento”/”monumento”, ou “palavra”/”coisa”, viu-se profundamente alterada,
senão mesmo desfeita. Já nos anos 50, Lucien Febvre não hesitava em escrever nos
seus “Combates pela História”: “A história faz-se com documentos escritos, sem
dúvida. Quando estes existem. Mas pode fazer-se, deve fazer-se sem documentos
escritos, quando não existem. Com tudo o que a habilidade do historiador lhe
permite utilizar... palavras, signos, telhas... Toda uma parte, e sem dúvida a
mais apaixonante do nosso trabalho de historiadores, não consistirá num esforço
constante para fazer falar as coisas mudas, para fazê-las dizer o que elas por
si próprias não dizem sobre os homens, sobre as sociedades que as produziram, e
para construir, finalmente, entre elas, aquela vasta rede de solidariedade e de
entre-ajuda que supre a ausência do documento escrito ?”. Para
alguns filósofos, as “coisas” chegaram até a constituir, do ponto de vista
epistemológico, o principal objecto do discurso histórico, que definitivamente
deveria deixar de resumir-se a uma espécie de memorização de “palavras”. Michel
Foucault, cuja evocação neste texto se não esconde, refere-se explicitamente ao
“triunfo dos monumentos” na sua “Arqueologia do saber”: “nos nossos dias, a
história é o que transforma os documentos em monumentos”. Ou seja, tal como
outrora se considerava que a Arqueologia apenas se cumpriria plenamente na
História (“era um tempo em que a arqueologia, como disciplina dos monumentos
mudos, dos traços inertes, dos objectos sem contexto e das coisas deixadas do
passado, se voltava para a história e só tomava sentido pelo restabelecimento de
um discurso histórico”), assim, no presente Foucault nos sugere um caminho em
sentido contrário: “poder-se-ia dizer, jogando com as palavras, que a história,
nos nossos dias, tende para a arqueologia, para a descrição intrínseca do
monumento”. E a verdade é que, no quadro do percurso filosófico e
historiográfico acabado de resumir, Arqueologia e História foram sendo cada vez mais
atraídas uma para a outra, puxadas pela força conjugada de historiadores e
arqueólogos. Gordon Childe, pelo lado dos arqueólogos: “Os dados arqueológicos
são documentos históricos por direito próprio e não meras abonações de textos
escritos. A arqueologia é uma forma
de história e não uma simples disciplina auxiliar”. Jacques Le Goff, pelo lado
dos historiadores: “A arqueologia tradicional transformou-se em história e
arqueologia da cultura (ou da civilização) material”. “Coisas” e “palavras”
passaram, por conseguinte, a ser consideradas como fontes da mesma natureza,
apreensíveis pelo recurso aos mesmos aparelhos teóricos, manipuláveis através
dos mesmos cuidados hermenêuticos. Expostas
estas ideias dir-se-ia ser pacífico e linear o percurso da ligação
epistemológica entre Arqueologia e História. Ora, a verdade é que nas últimas
décadas não poucos arqueólogos se esforçaram por provar o contrário, afirmando a
existência de dicotomias profundas. De um lado, teríamos os bens materiais,
“mudos” e “estáticos”; do outro, os
documentos escritos, “explícitos” e “dinâmicos”. E este facto obrigaria a
considerar que o estatuto de ambas as disciplinas seria não apenas diverso, como
radicalmente oposto: a Arqueologia, desenvolvendo “teorias de grau intermédio”
através das quais se pudessem explicar os mecanismos de passagem do “dinâmico”
(sistemas sociais do passado) ao “estático” (vestígios arqueológicos encontrados
no presente), poderia pretender ser uma verdadeira ciência, no âmbito da
Antropologia; a História, remetida para o domínio da interpretação
particularista de documentos, através de argumentos acomodativos, baseados no
“bom senso”, não passaria de uma “humanidade”. Obviamente, a esta dicotomia não
é estranha a filosofia hempel-popperiana de ciência. E também se pressentem nela
as circunstâncias que, na Europa e no “Novo Mundo”, conduziram a posicionamentos
diversos em relação à História: na velha Europa, pela densidade e continuidade
da ocupação humana (sem o reconhecimento de rupturas civilizacionais que
levassem a traçar uma qualquer fronteira onde o “outro” pudesse ter existência
separada do “nós”), sempre se favoreceu o estudo integrado do passado, incluindo
numa só disciplina, a História; na América, a descontinuidade civilizacional que
deu origem aos EUA ajudou a surgirem campos de estudo separados, a ponto de,
como observou Bruce Trigger, “a história tratar dos brancos e a antropologia,
dos índios”(... e “brancos e índios é susposto terem pouco em
comum”). Mas,
para além disto, verifica-se que a maior parte dos “novos arqueólogos”
defensores do paradigma antropológico se fixam ainda agora na antiga concepção
positivista de História. Pode dizer-se que pararam no século XIX, repetindo,
talvez sem saberem, as mesmas teses, aceitando os mesmos logros, defendendo as
mesmas dicotomias. Arrogantes, julgam ter descoberto a pólvora, sem sequer se
darem ao trabalho de ler textos elementares, como aquele onde, nos anos 40, Marc
Bloch já afirmava que “os textos escritos, ou os documentos arqueológicos, mesmo
os mais claros na aparência e os mais condescendentes, só falam quando se sabe
interrogá-los. Nunca, em ciência alguma, foi fecunda a observação passiva.
Supondo, aliás, que seja possível”. Ou seja: a historiografia contemporânea
interiorizou pelo menos desde há meio século o princípio de que nenhuma fonte é
totalmente “explítica” ou “dinâmica”, tal como nenhuma é o
contrário. Erguendo
clivagens e dicotomias onde elas não existem, e elevando-as ao plano ontológico
mais global, não admira, como observou Luis F. Bate, de um ponto de vista
marxista, que os arqueólogos processualistas se venham depois a situar “entre o
salto mortal e o milagre dialéctico” quando pretendem passar no “registo
estático” ao “passado dinâmico”. Mas não é apenas a Arqueologia marxista que tem
nos últimos anos reclamado contra aquele tipo de oposições. Também a chamada
“Arqueologia contextual” o tem feito, aliás com grande insistência: “Muitos
arqueólogos dirão certamente que os seus dados são mudos. Certamente um objecto
enquanto objecto, sózinho, é mudo. Mas a arqueologia não é o estudo de objectos
isolados. Logo que o contexto de um objecto é conhecido ele deixa de ser
totalmente mudo” - afirma Ian Hodder no seu livro “Reading the Past” (Cambridge
University Press, 1986), onde se refere com elegância à unidade fundamental
entre o estudo dos documentos escritos e dos testemunhos materiais, que prefere
designar por “textos de cultura material”. E
finalmente, não sendo “mudos”, os dados arqueológicos também não são
completamente “estáticos”. De resto, sendo certo que, como diria o senhor de
Luís
Raposo
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