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Re: [Archport] Terão a Arqueologia e a História os mesmos objectivos?

To :   "ARCHPORT" <Archport@ci.uc.pt>
Subject :   Re: [Archport] Terão a Arqueologia e a História os mesmos objectivos?
From :   "LRaposo" <3raposos@sapo.pt>
Date :   Fri, 22 Feb 2013 15:31:30 -0000

Caro Gonçalo,

De facto, Bruce Trigger continua a ser muito mal conhecido. Cita-se a sua obra fundamental sobre “História do Pensamento Arqueológico” (traduzida, aliás, para castelhano), cita-se mais raramente o seu contributo inestimável enquanto biógrafo, porventura o maior, de Vere Gordon Childe, mas quase nunca se cita o seu papel na construção teórica. Trigger sempre foi um “mal amado” do establishment arqueológico americano, especialmente da chamada “Nova Arqueologia” (“nova”, cerca de duas décadas depois de já a Matemática, a Biologia, a Geografia, etc., bem como a Antropologia e a História antes de todas, se terem a sim também chamado “novas”). Sofreu com isso, aliás. Trigger, um dos grandes vultos do pensamento arqueológico norte-americano, por ter sido sempre um defensor do paradigma histórico para a Arqueologia, foi como que “exilado” no Canadá, onde leccionou e teve de fazer pela vida.

Mas vale muito a pena ler os seus textos, nomeadamente a colectânea de artigos reunidos no livro que eu citava antes: Bruce Trigger (1978) - Time and Traditions: Essays in Archaeological Interpretation. Edinburgh: Edinburgh University Press, 1978.

A citação que eu fazia, tirada de um desses artigos, foi por mim também referida no texto que tenho a ousadia de reproduzir abaixo e deu nome ao volume em que foi incluído, volume de co-autoria minha e do António Carlos Silva: A Linguagem das Coisas. Ensaios e Crónicas de Arqueologia, Col. Forum da História, Publ. Europa-América, Lisboa, 1996.

Perdoe-se a imodéstia, mas como julgo que tal texto continua hoje a fazer sentido (pelo menos para mim faz “todo o sentido”).

Luís Raposo 

 

 

As palavras e as coisas

 

           Longe vai o tempo em que da Arqueologia se retinha apenas a ideia de um saber antiquarista destinado a melhor servir a colecção de objectos antigos. Se, enquanto arqueólogos e  parafraseando Sir Mortimer Wheeler, procurássemos apenas objectos mortos, então “mais valia que tivéssemos escolhido outra profissão”, já que “a Arqueologia morta é o pó mais seco que pode soprar”. Não nos movemos, pois, pelas “coisas” que desenterramos, mas as “gentes” que temos a pretensão de saber colocar por detrás delas. Será todavia que as nossas “coisas”, os objectos arqueológicos, estão à altura de desempenhar o papel que esperamos delas? Constituirão elas fontes de dignidade e/ou de natureza idêntica  às “palavras” que tradicionalmente alimentaram a pesquisa histórica ? Dito de outra forma e retomando uma velha dicotomia: qual o estatuto e capacidade informativa de “monumentos” e “documentos” ?

 

           Tradicionalmente, a historiografia positivista não teve dúvidas em responder: a História, na procura de factos (de “pequenos cubos de mosaico, bem distintos, bem homogéneos, bem polidos”, como Lucien Febvre tanto gostava de ironizar), deveria aceitar com humildade a sua função perpetuadora de memórias, através da decifração de “palavras”, recolhidas por escrito. Sem documentos escritos não haveria História, como enfaticamente fazia notar Fustel de Coulanges no final do século passado. E foi no quadro deste ambiente conceptual que, na mesma ocasião, se desenvolveu tanto uma “Pré-história”, entendida não apenas como período histórico, mas principalmente como campo de estudos estruturalmente distinto da História (muito mais ligado à Etnologia, ao estudo dos usos e costumes dos “povos primitivos”, dos “povos sem história”), como uma “Arqueologia”, entendida como “técnica auxiliar” (ou simples “criada de quarto”, com já houve quem lhe chamasse) da História.

 

           Entretanto, passou-se cerca de um século. Muita água correu sob as pontes da ciência histórica. Sob o impacto da historiografia do pós-guerra, a oposição “documento”/”monumento”, ou “palavra”/”coisa”, viu-se profundamente alterada, senão mesmo desfeita. Já nos anos 50, Lucien Febvre não hesitava em escrever nos seus “Combates pela História”: “A história faz-se com documentos escritos, sem dúvida. Quando estes existem. Mas pode fazer-se, deve fazer-se sem documentos escritos, quando não existem. Com tudo o que a habilidade do historiador lhe permite utilizar... palavras, signos, telhas... Toda uma parte, e sem dúvida a mais apaixonante do nosso trabalho de historiadores, não consistirá num esforço constante para fazer falar as coisas mudas, para fazê-las dizer o que elas por si próprias não dizem sobre os homens, sobre as sociedades que as produziram, e para construir, finalmente, entre elas, aquela vasta rede de solidariedade e de entre-ajuda que supre a ausência do documento escrito ?”.

 

           Para alguns filósofos, as “coisas” chegaram até a constituir, do ponto de vista epistemológico, o principal objecto do discurso histórico, que definitivamente deveria deixar de resumir-se a uma espécie de memorização de “palavras”. Michel Foucault, cuja evocação neste texto se não esconde, refere-se explicitamente ao “triunfo dos monumentos” na sua “Arqueologia do saber”: “nos nossos dias, a história é o que transforma os documentos em monumentos”. Ou seja, tal como outrora se considerava que a Arqueologia apenas se cumpriria plenamente na História (“era um tempo em que a arqueologia, como disciplina dos monumentos mudos, dos traços inertes, dos objectos sem contexto e das coisas deixadas do passado, se voltava para a história e só tomava sentido pelo restabelecimento de um discurso histórico”), assim, no presente Foucault nos sugere um caminho em sentido contrário: “poder-se-ia dizer, jogando com as palavras, que a história, nos nossos dias, tende para a arqueologia, para a descrição intrínseca do monumento”. E a verdade é que, no quadro do percurso filosófico e historiográfico acabado de resumir, Arqueologia  e História foram sendo cada vez mais atraídas uma para a outra, puxadas pela força conjugada de historiadores e arqueólogos. Gordon Childe, pelo lado dos arqueólogos: “Os dados arqueológicos são documentos históricos por direito próprio e não meras abonações de textos escritos.  A arqueologia é uma forma de história e não uma simples disciplina auxiliar”. Jacques Le Goff, pelo lado dos historiadores: “A arqueologia tradicional transformou-se em história e arqueologia da cultura (ou da civilização) material”. “Coisas” e “palavras” passaram, por conseguinte, a ser consideradas como fontes da mesma natureza, apreensíveis pelo recurso aos mesmos aparelhos teóricos, manipuláveis através dos mesmos cuidados hermenêuticos.

 

           Expostas estas ideias dir-se-ia ser pacífico e linear o percurso da ligação epistemológica entre Arqueologia e História. Ora, a verdade é que nas últimas décadas não poucos arqueólogos se esforçaram por provar o contrário, afirmando a existência de dicotomias profundas. De um lado, teríamos os bens materiais, “mudos” e  “estáticos”; do outro, os documentos escritos, “explícitos” e “dinâmicos”. E este facto obrigaria a considerar que o estatuto de ambas as disciplinas seria não apenas diverso, como radicalmente oposto: a Arqueologia, desenvolvendo “teorias de grau intermédio” através das quais se pudessem explicar os mecanismos de passagem do “dinâmico” (sistemas sociais do passado) ao “estático” (vestígios arqueológicos encontrados no presente), poderia pretender ser uma verdadeira ciência, no âmbito da Antropologia; a História, remetida para o domínio da interpretação particularista de documentos, através de argumentos acomodativos, baseados no “bom senso”, não passaria de uma “humanidade”. Obviamente, a esta dicotomia não é estranha a filosofia hempel-popperiana de ciência. E também se pressentem nela as circunstâncias que, na Europa e no “Novo Mundo”, conduziram a posicionamentos diversos em relação à História: na velha Europa, pela densidade e continuidade da ocupação humana (sem o reconhecimento de rupturas civilizacionais que levassem a traçar uma qualquer fronteira onde o “outro” pudesse ter existência separada do “nós”), sempre se favoreceu o estudo integrado do passado, incluindo numa só disciplina, a História; na América, a descontinuidade civilizacional que deu origem aos EUA ajudou a surgirem campos de estudo separados, a ponto de, como observou Bruce Trigger, “a história tratar dos brancos e a antropologia, dos índios”(... e “brancos e índios é susposto terem pouco em comum”).

 

           Mas, para além disto, verifica-se que a maior parte dos “novos arqueólogos” defensores do paradigma antropológico se fixam ainda agora na antiga concepção positivista de História. Pode dizer-se que pararam no século XIX, repetindo, talvez sem saberem, as mesmas teses, aceitando os mesmos logros, defendendo as mesmas dicotomias. Arrogantes, julgam ter descoberto a pólvora, sem sequer se darem ao trabalho de ler textos elementares, como aquele onde, nos anos 40, Marc Bloch já afirmava que “os textos escritos, ou os documentos arqueológicos, mesmo os mais claros na aparência e os mais condescendentes, só falam quando se sabe interrogá-los. Nunca, em ciência alguma, foi fecunda a observação passiva. Supondo, aliás, que seja possível”. Ou seja: a historiografia contemporânea interiorizou pelo menos desde há meio século o princípio de que nenhuma fonte é totalmente “explítica” ou “dinâmica”, tal como nenhuma é o contrário.

 

           Erguendo clivagens e dicotomias onde elas não existem, e elevando-as ao plano ontológico mais global, não admira, como observou Luis F. Bate, de um ponto de vista marxista, que os arqueólogos processualistas se venham depois a situar “entre o salto mortal e o milagre dialéctico” quando pretendem passar no “registo estático” ao “passado dinâmico”. Mas não é apenas a Arqueologia marxista que tem nos últimos anos reclamado contra aquele tipo de oposições. Também a chamada “Arqueologia contextual” o tem feito, aliás com grande insistência: “Muitos arqueólogos dirão certamente que os seus dados são mudos. Certamente um objecto enquanto objecto, sózinho, é mudo. Mas a arqueologia não é o estudo de objectos isolados. Logo que o contexto de um objecto é conhecido ele deixa de ser totalmente mudo” - afirma Ian Hodder no seu livro “Reading the Past” (Cambridge University Press, 1986), onde se refere com elegância à unidade fundamental entre o estudo dos documentos escritos e dos testemunhos materiais, que prefere designar por “textos de cultura material”.

 

           E finalmente, não sendo “mudos”, os dados arqueológicos também não são completamente “estáticos”. De resto, sendo certo que, como diria o senhor de La Palice, todos os passados já passaram, nenhum deles pode no presente ser considerado vivo, “dinâmico”, seja qual fôr o meio utilizado para o perscrutar. Daí que a força de um ou outro tipo de fonte histórica não esteja no maior ou menor valor apriorístico do seu testemunho, no colorido mais ou menos dinâmico do seu relato, na apresentação mais ou menos explícita das intenções dos seus autores, mas tão-só na coerência da sua integração num contexto que o historiador/arqueólogo reescreve e, idealmente, espera poder representar a melhor aproximação da realidade passada.

 

Luís Raposo

----- Original Message -----
Sent: Friday, February 22, 2013 12:35 AM
Subject: RE: [Archport] Terão a Arqueologia e a História os mesmos objectivos?

Estimado Luís obrigado por esta frase tão interessante.

Na realidade isso ainda continua a passar, quando viajei ao Sul para estudar a produção de cerâmica entre as comunidades mapuches era notória a diferença "museológica" das pequenas cidades; num extremo o museu histórico e noutro o museu mapuche, vi pelo menos disto em 3 localidades. 

No entanto, ainda bem que falas em Trigger, como já comentei com alguém em privado, no âmbito deste debate, somos tão ensaboados nos primeiros anos da Faculdade com as teorias das fontes e as problemáticas do saber histórico e Trigger... Trigger nem se vê.

Um abraço



From: amaro_goncalo@hotmail.com
To: 3raposos@sapo.pt; archport@ci.uc.pt
Subject: RE: [Archport] Terão a Arqueologia e a História os mesmos objectivos?
Date: Fri, 22 Feb 2013 00:32:20 +0000

From: 3raposos@sapo.pt
To: Archport@ci.uc.pt
Date: Thu, 21 Feb 2013 23:17:31 +0000
Subject: Re: [Archport] Terão a Arqueologia e a História os mesmos objectivos?

Citação

[nos Estados Unidos] “A história trata dos brancos e a antropologia, dos índios… e brancos e índios é suposto terem pouco em comum”.

 

Bruce Trigger (1978) - Time and Traditions: Essays in Archaeological Interpretation. Edinburgh: Edinburgh University Press, 1978

 

 

 

----- Original Message -----
Sent: Tuesday, February 19, 2013 11:31 PM
Subject: [Archport] Terão a Arqueologia e a História os mesmos objectivos?

Boa noite,

Peço desculpa por os estar a maçar, ultimamente tenho estado com algumas inquietações no que diz respeito à forma como fazemos ou devemos fazer Arqueologia… é uma conversa chata, e se calhar ingénua, bem sei.


Sucede o seguinte: aqui no Chile, onde estou a fazer investigação sobre cultura material, ando meio estagnado nos conceitos teóricos, neste país a Arqueologia é mais Antropologia que outra coisa (demasiado Binford para o meu gosto); por conseguinte o pensamento arqueológico segue um pouco os modelos anglo-saxões (mais processuais que pós-processuais). Aqui são muito críticos em relação à História (às vezes mais por temas políticos que propriamente metodológicos). E de facto, se temos em conta a mais recente literatura sobre cultura material, estamos cada vez mais distantes. Não quero com isto dizer que não são compatíveis, apenas que provavelmente tem fins e métodos diferentes.

 

Seguindo, mais ou menos, as palavras de Foucault na sua “Arqueologia do conhecimento”: a História procura a verdade através de documentos escritos, tenta construir uma narrativa contínua do desenvolvimento dos modos de pensar, por outro lado, a Arqueologia interessa-se pelo particular e pela ruptura temporal. Não busca descobrir o que é que as pessoas, deste ou daquele tempo, estariam a pensar ou a escrever no passado, mas sim os mecanismos que as permitem falar e ser tomadas em sério. Mais que uma disciplina do passado como é a História (ou não?), será a Arqueologia uma disciplina mediadora entre o passado e o presente? E como tal, temos de partir de uma base teórico-filosófica diferente?

 

Queria então perguntar aos colegas lusos qual é vossa opinião sobre o tema, uma vez que em Portugal continuamos a ser formados nas universidades, como se calhar na maior parte da Europa continental, por uma estratégia de investigação com base no modelo da História das Ideias – sei que em Espanha o tema tem sido discutido, tanto pela Almudena Hernando como pelo Alfredo González-Ruibal, por exemplo.

 

Desconheço se o tema tem sido discutido no nosso país (sei que o Vítor Jorge, tem feito observações sobre o tema), mas entre o meu tempo em Espanha e no Chile, já lá vão seis anos (com passagens curtas por Portugal), e aqui é mais difícil acompanhar os debates e até mesmo ler alguma literatura nacional, numa altura em que, segundo me contam, há cada vez menos revista activas que publiquem textos sobre Arqueologia.

 

Provavelmente não têm muita paciência para esta temática, tendo em conta que em Portugal, nesta fase, devido à situação política e financeira, há pouco tempo para pensar. Não obstante, estou realmente interessado em ler opiniões sobre o tema, até porque me ajudarão bastante no debate com os colegas chilenos.

 

Atento e agradecido dos vossos comentários. Obrigado.

 

Um abraço

 

PS: Não sei se a archport é o espaço para este tipo de debates, como tal aceito a decisão de publicação ao critério dos seus responsáveis.

 

Gonçalo de Carvalho Amaro




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