Não é modéstia nenhuma, continua a fazer sentido. Quanto ao Bruce Trigger tenho entendido que trabalhar no Canadá foi opção própria por ser o seu país (nasceu em Ontário). De facto esse até foi um aspecto essencial para o seu trabalho. Pois, no seu tempo, o Canadá mantinha ainda uma estreita ligação com o Reino Unido, o que lhe permitiu fazer algumas estadias em universidades, e era também fronteira com os EUA, onde Trigger se doutorou (creio que em Yale), o facto ser canadiano segundo Thomas ou Hodder, permitiram-lhe ter uma visão global dos dois "mundos" e por isso produzir essa magnifica obra A History of Archaeological Thought, com um tremendo sentido crítico e isenção. No mesmo âmbito e aproveitando a deixa recomendo dois livros que mudaram completamente a minha visão da Arqueologia Archaeology and Modernity de Julian Thomas e The Perception of the Environment de Tim Ingold (que recentemente esteve aqui no Chile). Agora a "Nova Arqueologia" é a "Velha Arqueologia", a nova, "Nova Arqueologia" é dinâmica, critica, consciente de que não há verdades absolutas, que conhece as correntes históricas e também as antropológicas, e até filosóficas (que ao fim ao cabo, foram o motor das outras), uma disciplina das coisas (como dizem por aí), e da relação das mesmas com os seres humanos, numa espécie de mediação entre o presente e o passado. Voltando ao seu texto, devo reconhecer que o li por alto enquanto estudante por volta de 2004, já não me recordava bem dele, é uma pena que essa proposta tenha esmorecido e mais importante, não tenha vingado nas universidades onde, a meu ver, a Arqueologia continua a ser vista como uma disciplina auxiliar da História, sendo que, na realidade, são duas disciplinas complementares que se nutrem mutuamente. Não vejo que exista, em Portugal, um plano de igualdade entre as duas, mas sim um controlo de uma sobre a outra. Nas universidades, pelo menos no meu tempo, lamentavelmente essa era mais ou menos a regra, teoria História, Arqueologia-campo, tanto que, as disciplinas de Arqueologia eram nada mais que um Catálogo de materiais inertes da Pré-História à Idade Moderna... Um abraço e obrigado por recordar-me do seu texto. Gonçalo From: 3raposos@sapo.pt To: Archport@ci.uc.pt CC: amaro_goncalo@hotmail.com Subject: Re: [Archport] Terão a Arqueologia e a História os mesmos objectivos? Date: Fri, 22 Feb 2013 15:31:30 +0000 Caro
Gonçalo,
De facto, Bruce Trigger continua a ser muito mal conhecido. Cita-se a sua obra fundamental sobre “História do Pensamento Arqueológico” (traduzida, aliás, para castelhano), cita-se mais raramente o seu contributo inestimável enquanto biógrafo, porventura o maior, de Vere Gordon Childe, mas quase nunca se cita o seu papel na construção teórica. Trigger sempre foi um “mal amado” do establishment arqueológico americano, especialmente da chamada “Nova Arqueologia” (“nova”, cerca de duas décadas depois de já a Matemática, a Biologia, a Geografia, etc., bem como a Antropologia e a História antes de todas, se terem a sim também chamado “novas”). Sofreu com isso, aliás. Trigger, um dos grandes vultos do pensamento arqueológico norte-americano, por ter sido sempre um defensor do paradigma histórico para a Arqueologia, foi como que “exilado” no Canadá, onde leccionou e teve de fazer pela vida. Mas vale muito a pena ler os seus textos, nomeadamente a colectânea de artigos reunidos no livro que eu citava antes: Bruce Trigger (1978) - Time and Traditions: Essays in Archaeological Interpretation. Edinburgh: Edinburgh University Press, 1978. A citação que eu fazia, tirada de um desses artigos, foi por mim também referida no texto que tenho a ousadia de reproduzir abaixo e deu nome ao volume em que foi incluído, volume de co-autoria minha e do António Carlos Silva: A Linguagem das Coisas. Ensaios e Crónicas de Arqueologia, Col. Forum da História, Publ. Europa-América, Lisboa, 1996. Perdoe-se a imodéstia, mas como julgo que tal texto continua hoje a fazer sentido (pelo menos para mim faz “todo o sentido”). Luís Raposo
As palavras e as coisas
Longe vai o tempo em que da Arqueologia se retinha apenas a ideia de um saber antiquarista destinado a melhor servir a colecção de objectos antigos. Se, enquanto arqueólogos e parafraseando Sir Mortimer Wheeler, procurássemos apenas objectos mortos, então “mais valia que tivéssemos escolhido outra profissão”, já que “a Arqueologia morta é o pó mais seco que pode soprar”. Não nos movemos, pois, pelas “coisas” que desenterramos, mas as “gentes” que temos a pretensão de saber colocar por detrás delas. Será todavia que as nossas “coisas”, os objectos arqueológicos, estão à altura de desempenhar o papel que esperamos delas? Constituirão elas fontes de dignidade e/ou de natureza idêntica às “palavras” que tradicionalmente alimentaram a pesquisa histórica ? Dito de outra forma e retomando uma velha dicotomia: qual o estatuto e capacidade informativa de “monumentos” e “documentos” ?
Tradicionalmente, a historiografia positivista não teve dúvidas em responder: a História, na procura de factos (de “pequenos cubos de mosaico, bem distintos, bem homogéneos, bem polidos”, como Lucien Febvre tanto gostava de ironizar), deveria aceitar com humildade a sua função perpetuadora de memórias, através da decifração de “palavras”, recolhidas por escrito. Sem documentos escritos não haveria História, como enfaticamente fazia notar Fustel de Coulanges no final do século passado. E foi no quadro deste ambiente conceptual que, na mesma ocasião, se desenvolveu tanto uma “Pré-história”, entendida não apenas como período histórico, mas principalmente como campo de estudos estruturalmente distinto da História (muito mais ligado à Etnologia, ao estudo dos usos e costumes dos “povos primitivos”, dos “povos sem história”), como uma “Arqueologia”, entendida como “técnica auxiliar” (ou simples “criada de quarto”, com já houve quem lhe chamasse) da História.
Entretanto, passou-se cerca de um século. Muita água correu sob as pontes da ciência histórica. Sob o impacto da historiografia do pós-guerra, a oposição “documento”/”monumento”, ou “palavra”/”coisa”, viu-se profundamente alterada, senão mesmo desfeita. Já nos anos 50, Lucien Febvre não hesitava em escrever nos seus “Combates pela História”: “A história faz-se com documentos escritos, sem dúvida. Quando estes existem. Mas pode fazer-se, deve fazer-se sem documentos escritos, quando não existem. Com tudo o que a habilidade do historiador lhe permite utilizar... palavras, signos, telhas... Toda uma parte, e sem dúvida a mais apaixonante do nosso trabalho de historiadores, não consistirá num esforço constante para fazer falar as coisas mudas, para fazê-las dizer o que elas por si próprias não dizem sobre os homens, sobre as sociedades que as produziram, e para construir, finalmente, entre elas, aquela vasta rede de solidariedade e de entre-ajuda que supre a ausência do documento escrito ?”.
Para alguns filósofos, as “coisas” chegaram até a constituir, do ponto de vista epistemológico, o principal objecto do discurso histórico, que definitivamente deveria deixar de resumir-se a uma espécie de memorização de “palavras”. Michel Foucault, cuja evocação neste texto se não esconde, refere-se explicitamente ao “triunfo dos monumentos” na sua “Arqueologia do saber”: “nos nossos dias, a história é o que transforma os documentos em monumentos”. Ou seja, tal como outrora se considerava que a Arqueologia apenas se cumpriria plenamente na História (“era um tempo em que a arqueologia, como disciplina dos monumentos mudos, dos traços inertes, dos objectos sem contexto e das coisas deixadas do passado, se voltava para a história e só tomava sentido pelo restabelecimento de um discurso histórico”), assim, no presente Foucault nos sugere um caminho em sentido contrário: “poder-se-ia dizer, jogando com as palavras, que a história, nos nossos dias, tende para a arqueologia, para a descrição intrínseca do monumento”. E a verdade é que, no quadro do percurso filosófico e historiográfico acabado de resumir, Arqueologia e História foram sendo cada vez mais atraídas uma para a outra, puxadas pela força conjugada de historiadores e arqueólogos. Gordon Childe, pelo lado dos arqueólogos: “Os dados arqueológicos são documentos históricos por direito próprio e não meras abonações de textos escritos. A arqueologia é uma forma de história e não uma simples disciplina auxiliar”. Jacques Le Goff, pelo lado dos historiadores: “A arqueologia tradicional transformou-se em história e arqueologia da cultura (ou da civilização) material”. “Coisas” e “palavras” passaram, por conseguinte, a ser consideradas como fontes da mesma natureza, apreensíveis pelo recurso aos mesmos aparelhos teóricos, manipuláveis através dos mesmos cuidados hermenêuticos.
Expostas estas ideias dir-se-ia ser pacífico e linear o percurso da ligação epistemológica entre Arqueologia e História. Ora, a verdade é que nas últimas décadas não poucos arqueólogos se esforçaram por provar o contrário, afirmando a existência de dicotomias profundas. De um lado, teríamos os bens materiais, “mudos” e “estáticos”; do outro, os documentos escritos, “explícitos” e “dinâmicos”. E este facto obrigaria a considerar que o estatuto de ambas as disciplinas seria não apenas diverso, como radicalmente oposto: a Arqueologia, desenvolvendo “teorias de grau intermédio” através das quais se pudessem explicar os mecanismos de passagem do “dinâmico” (sistemas sociais do passado) ao “estático” (vestígios arqueológicos encontrados no presente), poderia pretender ser uma verdadeira ciência, no âmbito da Antropologia; a História, remetida para o domínio da interpretação particularista de documentos, através de argumentos acomodativos, baseados no “bom senso”, não passaria de uma “humanidade”. Obviamente, a esta dicotomia não é estranha a filosofia hempel-popperiana de ciência. E também se pressentem nela as circunstâncias que, na Europa e no “Novo Mundo”, conduziram a posicionamentos diversos em relação à História: na velha Europa, pela densidade e continuidade da ocupação humana (sem o reconhecimento de rupturas civilizacionais que levassem a traçar uma qualquer fronteira onde o “outro” pudesse ter existência separada do “nós”), sempre se favoreceu o estudo integrado do passado, incluindo numa só disciplina, a História; na América, a descontinuidade civilizacional que deu origem aos EUA ajudou a surgirem campos de estudo separados, a ponto de, como observou Bruce Trigger, “a história tratar dos brancos e a antropologia, dos índios”(... e “brancos e índios é susposto terem pouco em comum”).
Mas, para além disto, verifica-se que a maior parte dos “novos arqueólogos” defensores do paradigma antropológico se fixam ainda agora na antiga concepção positivista de História. Pode dizer-se que pararam no século XIX, repetindo, talvez sem saberem, as mesmas teses, aceitando os mesmos logros, defendendo as mesmas dicotomias. Arrogantes, julgam ter descoberto a pólvora, sem sequer se darem ao trabalho de ler textos elementares, como aquele onde, nos anos 40, Marc Bloch já afirmava que “os textos escritos, ou os documentos arqueológicos, mesmo os mais claros na aparência e os mais condescendentes, só falam quando se sabe interrogá-los. Nunca, em ciência alguma, foi fecunda a observação passiva. Supondo, aliás, que seja possível”. Ou seja: a historiografia contemporânea interiorizou pelo menos desde há meio século o princípio de que nenhuma fonte é totalmente “explítica” ou “dinâmica”, tal como nenhuma é o contrário.
Erguendo clivagens e dicotomias onde elas não existem, e elevando-as ao plano ontológico mais global, não admira, como observou Luis F. Bate, de um ponto de vista marxista, que os arqueólogos processualistas se venham depois a situar “entre o salto mortal e o milagre dialéctico” quando pretendem passar no “registo estático” ao “passado dinâmico”. Mas não é apenas a Arqueologia marxista que tem nos últimos anos reclamado contra aquele tipo de oposições. Também a chamada “Arqueologia contextual” o tem feito, aliás com grande insistência: “Muitos arqueólogos dirão certamente que os seus dados são mudos. Certamente um objecto enquanto objecto, sózinho, é mudo. Mas a arqueologia não é o estudo de objectos isolados. Logo que o contexto de um objecto é conhecido ele deixa de ser totalmente mudo” - afirma Ian Hodder no seu livro “Reading the Past” (Cambridge University Press, 1986), onde se refere com elegância à unidade fundamental entre o estudo dos documentos escritos e dos testemunhos materiais, que prefere designar por “textos de cultura material”.
E finalmente, não sendo “mudos”, os dados arqueológicos também não são completamente “estáticos”. De resto, sendo certo que, como diria o senhor de La Palice, todos os passados já passaram, nenhum deles pode no presente ser considerado vivo, “dinâmico”, seja qual fôr o meio utilizado para o perscrutar. Daí que a força de um ou outro tipo de fonte histórica não esteja no maior ou menor valor apriorístico do seu testemunho, no colorido mais ou menos dinâmico do seu relato, na apresentação mais ou menos explícita das intenções dos seus autores, mas tão-só na coerência da sua integração num contexto que o historiador/arqueólogo reescreve e, idealmente, espera poder representar a melhor aproximação da realidade passada.
Luís Raposo
|
Mensagem anterior por data: [Archport] Fw: Terão a Arqueologia e a História os mesmos objectivos? | Próxima mensagem por data: Re: [Archport] Fw: Terão a Arqueologia e a História os mesmos objectivos? |
Mensagem anterior por assunto: Re: [Archport] Terão a Arqueologia e a História os mesmos objectivos? | Próxima mensagem por assunto: [Archport] Termas domésticas |