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Re: [Archport] Fwd: Escavações arqueológicas revelam o passado escravagista de Portugal

To :   Luís Raposo <3raposos@sapo.pt>
Subject :   Re: [Archport] Fwd: Escavações arqueológicas revelam o passado escravagista de Portugal
From :   Alexandre Monteiro <alexandre.monteiro@gmail.com>
Date :   Tue, 26 Sep 2023 14:06:41 +0100

O estado da arte sobre esta mitificada população é-nos dado pelo livro da Isabel Castro Henriques, com colaboração de João Moreira da Silva:

"Os Pretos do Sado: História e Memória de Uma Comunidade Alentejana de Origem Africana (Séculos XV-XX)"

publicado em 2020 pelas Edições Colibri, cuja leitura recomendo vivamente, não só porque se lê muito bem mas essencialmente porque:

1) demonstra o limite das fontes históricas;
2) ilumina o que é a honestidade intelectual, que nunca vai para além do que as fontes lhe permite dizer;
3) mostra como o rigor científico pode desmontar estórias etnográficas enraizadas no imaginário popular, como essa que por aí corre, que diz que houve uma importação de escravos africanos para a região, no século XVIII, para vir trabalhar a orizicultura do Sado, por estes serem resistentes à malária;
4) deixa claro que o problema fulcral da sociedade, a de ontem como a de hoje, não é identitário. é de classe. e que se há a luta a fazer, é por aí. o resto, como soía dizer-se quando nasci, é para épater la bourgeoisie.

Deixo-vos aqui as conclusões  dos autores (pgs. 185-188):

“O trajecto histórico das populações de origem africana do Vale do Sado que procurámos percorrer, durante quase cinco séculos, mostra-nos uma realidade social complexa, de difícil investigação em virtude da fragilidade bibliográfica e documental, bem como do silêncio a que a história portuguesa votou estes homens e mulheres, hoje plenamente alentejanos. Mas a construção da sua identidade portuguesa foi marcada por um longo e duro percurso de vida, iniciado no quadro da escravatura quatrocentista e quinhentista que se manteve até finais do século XVIII, princípios de Oitocentos, e de um forte preconceito português que reduziu os negros, os mestiços, os africanos, durante longos séculos, a um lugar subalterno na sociedade portuguesa.
Se o corolário desta investigação é pôr em evidência as estratégias de sobrevivência desta população singular e as diferentes etapas da organização da sua nova identidade alentejana e portuguesa, o caminho que tiveram que percorrer para assegurar a sua plena portugalidade foi duro no trabalho, foi violento nas formas de integração, foi marcado por condições de vida discriminatórias e por práticas sofridas de miséria em diferentes registos da sua humanidade.
Este estudo procurou percorrer e compreender a vida secular de uma comunidade de matriz africana. De uma forma mais precisa, esta investigação seguiu alguns caminhos temáticos capazes de permitir elaborar hipóteses de trabalho necessárias à concretização dos objectivos que nos propusemos atingir, e que conduziram a organização e a escrita do texto.
Começámos por traçar o território em que se movia esta narrativa, recorrendo a textos de especialistas nas áreas da geografia, da economia, da agronomia, que pudessem colmatar as nossas lacunas no conhecimento dessas vertentes do saber. Pudemos caracterizar sinteticamente o espaço natural em torno do rio Sado, que acolheu a partir de finais do século as populações de origem africana, objecto do nosso estudo. E pudemos igualmente verificar a intensidade das relações, das trocas, dos caminhos de circulação que fizeram desta região um espaço dinâmico secular. Uma economia baseada na grande propriedade fundiária, em que se destaca, como proprietária, até ao século XIX, a Ordem Militar de Santiago, na agricultura, no pastoreio, na produção do sal, na existência de técnicas e sistemas de produção relevantes - como moinhos, pisões e lagares -, caracteriza a região cuja colonização foi uma tarefa difícil e secular, que se traduziu numa frágil demografia.
Neste quadro global vieram instalar-se homens e mulheres de África, trazidos como escravos a partir das décadas finais do século XV. A documentação quatrocentista fixa o Algarve, em particular a cidade de Lagos, como ponto de entrada dos primeiros escravos africanos e de relações intensas entre Alcácer do Sal e o sul do país, nessa época, permitindo o transporte de escravos para a região sadina. Uma das nossas preocupações foi encontrar documentação coeva capaz de nos permitir fixar com alguma certeza e rigor os tempos iniciais dessa fixação "negra" nas margens do Sado. Definimos um território sadino vasto capaz de nos permitir essa datação, sabendo que as rotas de circulação de homens e de mercadorias existiam e funcionavam entre as diferentes localidades da região.
Essa população escrava de origem africana, anónima, integrou-se nas propriedades rurais, mantendo-se dispersa e demograficamente frágil na região. Estudar as formas de vida desta população, durante vários séculos - do século XVI ao século XVIII - foi outro dos nossos objectivos, centrado em questões fundamentais como a sua nova identidade, o trabalho, as condições materiais, as práticas religiosas, a sua integração em instituições católicas, como irmandades e confrarias, a sua condição jurídica e o acesso à alforria. Escravos e forros de origem africana, "pretos" ou "mulatos" nascidos em Portugal, constituem um grupo disperso as propriedades rurais da região, caracterizado por quotidianos similares aos das populações trabalhadoras locais, mas marcado pelo preconceito racial e social que, se os separa dos portugueses, não deixa de lhes permitir a integração e a consequente perda constante da sua identidade africana. O processo de portugalização terá pois começado cedo, tendo em conta a sua presença numérica pouco significativa, nesta época, e o processo de integração, em particular, através do trabalho e da religião.

Em finais do século XVIII e nas décadas seguintes, uma comunidade mais coesa e mais densa demograficamente fixou-se na Ribeira do Sado, sobretudo na margem esquerda do rio, fixação essa que assenta em diversas interpretações, mas que confirma o aumento da população negra ou mestiça na região, população de homens e mulheres forros e livres, já vivendo em Portugal e que para ali se deslocaram, na sequência das legislações pombalinas e sobretudo das práticas sociais que se seguiram. Integrados numa orizicultura em expansão no século XIX, vivendo nos montes, herdades ou em aglomerações de palhotas instaladas nas propriedades fundiárias, trabalhando lado a lado com outros trabalhadores portugueses nas duras tarefas da cultura do arroz, homens e mulheres com uma origem africana mais ou menos longínqua, passam da dispersão do passado para a formação daquilo que Leite de Vasconcelos chamou uma «colónia». O estudo dos seus quotidianos e das relações intensas com os outros trabalhadores do arroz permite compreender o seu processo de construção de uma comunidade alentejana, de raízes africanas.
A adesão a práticas sociais e a valores regionais dominantes caracterizam esta população, em que os vestígios africanos são sobretudo físicos. Com o tempo, os seus costumes, os seus valores, as suas crenças e as suas tradições africanas diluíram-se nas formas culturais e sociais locais, de matriz europeia, integrando-se e revelando, ontem e hoje, manifestações culturais idênticas às dos outros alentejanos."

Em ter., 26 de set. de 2023 às 14:04, Alexandre Monteiro <alexandre.monteiro@gmail.com> escreveu:
O estado da arte sobre esta mitificada população é-nos dado pelo livro da Isabel Castro Henriques, com colaboração de João Moreira da Silva:

"Os Pretos do Sado: História e Memória de Uma Comunidade Alentejana de Origem Africana (Séculos XV-XX)"

publicado em 2020 pelas Edições Colibri, cuja leitura recomendo vivamente, não só porque se lê muito bem mas essencialmente porque:

1) demonstra o limite das fontes históricas;
2) ilumina o que é a honestidade intelectual, que nunca vai para além do que as fontes lhe permite dizer;
3) mostra como o rigor científico pode desmontar estórias etnográficas enraizadas no imaginário popular, como essa que por aí corre, que diz que houve uma importação de escravos africanos para a região, no século XVIII, para vir trabalhar a orizicultura do Sado, por estes serem resistentes à malária;
4) deixa claro que o problema fulcral da sociedade, a de ontem como a de hoje, não é identitário. é de classe. e que se há a luta a fazer, é por aí. o resto, como soía dizer-se quando nasci, é para épater la bourgeoisie.

Deixo-vos aqui as conclusões  dos autores (pgs. 185-188): 

“O trajecto histórico das populações de origem africana do Vale do Sado que procurámos percorrer, durante quase cinco séculos, mostra-nos uma realidade social complexa, de difícil investigação em virtude da fragilidade bibliográfica e documental, bem como do silêncio a que a história portuguesa votou estes homens e mulheres, hoje plenamente alentejanos. Mas a construção da sua identidade portuguesa foi marcada por um longo e duro percurso de vida, iniciado no quadro da escravatura quatrocentista e quinhentista que se manteve até finais do século XVIII, princípios de Oitocentos, e de um forte preconceito português que reduziu os negros, os mestiços, os africanos, durante longos séculos, a um lugar subalterno na sociedade portuguesa. 
Se o corolário desta investigação é pôr em evidência as estratégias de sobrevivência desta população singular e as diferentes etapas da organização da sua nova identidade alentejana e portuguesa, o caminho que tiveram que percorrer para assegurar a sua plena portugalidade foi duro no trabalho, foi violento nas formas de integração, foi marcado por condições de vida discriminatórias e por práticas sofridas de miséria em diferentes registos da sua humanidade.
Este estudo procurou percorrer e compreender a vida secular de uma comunidade de matriz africana. De uma forma mais precisa, esta investigação seguiu alguns caminhos temáticos capazes de permitir elaborar hipóteses de trabalho necessárias à concretização dos objectivos que nos propusemos atingir, e que conduziram a organização e a escrita do texto.
Começámos por traçar o território em que se movia esta narrativa, recorrendo a textos de especialistas nas áreas da geografia, da economia, da agronomia, que pudessem colmatar as nossas lacunas no conhecimento dessas vertentes do saber. Pudemos caracterizar sinteticamente o espaço natural em torno do rio Sado, que acolheu a partir de finais do século as populações de origem africana, objecto do nosso estudo. E pudemos igualmente verificar a intensidade das relações, das trocas, dos caminhos de circulação que fizeram desta região um espaço dinâmico secular. Uma economia baseada na grande propriedade fundiária, em que se destaca, como proprietária, até ao século XIX, a Ordem Militar de Santiago, na agricultura, no pastoreio, na produção do sal, na existência de técnicas e sistemas de produção relevantes - como moinhos, pisões e lagares -, caracteriza a região cuja colonização foi uma tarefa difícil e secular, que se traduziu numa frágil demografia.
Neste quadro global vieram instalar-se homens e mulheres de África, trazidos como escravos a partir das décadas finais do século XV. A documentação quatrocentista fixa o Algarve, em particular a cidade de Lagos, como ponto de entrada dos primeiros escravos africanos e de relações intensas entre Alcácer do Sal e o sul do país, nessa época, permitindo o transporte de escravos para a região sadina. Uma das nossas preocupações foi encontrar documentação coeva capaz de nos permitir fixar com alguma certeza e rigor os tempos iniciais dessa fixação "negra" nas margens do Sado. Definimos um território sadino vasto capaz de nos permitir essa datação, sabendo que as rotas de circulação de homens e de mercadorias existiam e funcionavam entre as diferentes localidades da região.
Essa população escrava de origem africana, anónima, integrou-se nas propriedades rurais, mantendo-se dispersa e demograficamente frágil na região. Estudar as formas de vida desta população, durante vários séculos - do século XVI ao século XVIII - foi outro dos nossos objectivos, centrado em questões fundamentais como a sua nova identidade, o trabalho, as condições materiais, as práticas religiosas, a sua integração em instituições católicas, como irmandades e confrarias, a sua condição jurídica e o acesso à alforria. Escravos e forros de origem africana, "pretos" ou "mulatos" nascidos em Portugal, constituem um grupo disperso as propriedades rurais da região, caracterizado por quotidianos similares aos das populações trabalhadoras locais, mas marcado pelo preconceito racial e social que, se os separa dos portugueses, não deixa de lhes permitir a integração e a consequente perda constante da sua identidade africana. O processo de portugalização terá pois começado cedo, tendo em conta a sua presença numérica pouco significativa, nesta época, e o processo de integração, em particular, através do trabalho e da religião.

Em finais do século XVIII e nas décadas seguintes, uma comunidade mais coesa e mais densa demograficamente fixou-se na Ribeira do Sado, sobretudo na margem esquerda do rio, fixação essa que assenta em diversas interpretações, mas que confirma o aumento da população negra ou mestiça na região, população de homens e mulheres forros e livres, já vivendo em Portugal e que para ali se deslocaram, na sequência das legislações pombalinas e sobretudo das práticas sociais que se seguiram. Integrados numa orizicultura em expansão no século XIX, vivendo nos montes, herdades ou em aglomerações de palhotas instaladas nas propriedades fundiárias, trabalhando lado a lado com outros trabalhadores portugueses nas duras tarefas da cultura do arroz, homens e mulheres com uma origem africana mais ou menos longínqua, passam da dispersão do passado para a formação daquilo que Leite de Vasconcelos chamou uma «colónia». O estudo dos seus quotidianos e das relações intensas com os outros trabalhadores do arroz permite compreender o seu processo de construção de uma comunidade alentejana, de raízes africanas. 
A adesão a práticas sociais e a valores regionais dominantes caracterizam esta população, em que os vestígios africanos são sobretudo físicos. Com o tempo, os seus costumes, os seus valores, as suas crenças e as suas tradições africanas diluíram-se nas formas culturais e sociais locais, de matriz europeia, integrando-se e revelando, ontem e hoje, manifestações culturais idênticas às dos outros alentejanos."

Em ter., 26 de set. de 2023 às 13:12, Luís Raposo <3raposos@sapo.pt> escreveu:
Agradeço o esclarecimento.
Aguardemos, pois, resultados, esperando que não haja aqui algo que popularmente se expressa em "entradas de leão, saídas de sendeiro".
O tema é indiscutivelmente importante, científica e socialmente.
Mais uma razão para o abordar com todo o rigor e seriedade, esperando que haja resultados realmente palpáveis.
Para já, para já, aquilo que temos é o que já sabíamos, tanto pela via da documentação e investigação históricas e da tradição oral, como até pela via da arte e do património (cf. as referências já aqui feitas pelo Jorge Feio à representação de negros, muito presumivelmente com estatuto de escravizados). Querer "meter a arqueologia pelo buraco da agulha", pode até lograr convencer quem já está predisposto para ser convencido (mesmo em concursos da FCT...) , pode promover carreiras e centros universitários, mas depois, bom depois, existe essa coisa chata que é a confrontaçãao com a prova dos factos.
Luís Raposo



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