A Arqueologia no reino da Antárctida
O que resta
de antigos naufrágios continua envolto em mui aliciante
halo de mistério. Alvo dos caçadores de tesouros é, também, cada vez mais
(felizmente!) tema a merecer a maior atenção
por parte dos governos e dos investigadores. Dos governos, porque –
ciosos dos achados nas suas águas territoriais – podem, pela adopção de leis adequadas, salvaguardar o seu
património; dos investigadores, porque cada objecto recuperado detém sempre um
mundo de informações histórico-culturais do maior alcance.
Compreende-se,
por isso, o interesse que despertaram na comunicação
social os achados na foz do rio Tejo, não desprovidos de polémica, quer recente
quer mesmo por ocasião da Expo’98, pois aí se expôs algum do espólio encontrado.
Dedicada ao Mar, a Expo tinha, necessariamente, de mostrar algo desse nosso
património.
Nesse âmbito
se poderá enquadrar de pleno direito a Menção
Especial atribuída, no quadro do Prémio de Arqueologia Eduardo da Cunha Serrão
de 2018 (mui louvável iniciativa da Associação
dos Arqueólogos Portugueses), à tese de doutoramento da autoria de José António
Bettencourt, Os naufrágios da baía de Angra
(Ilha Terceira, Açores): uma aproximação
arqueológica aos navios ibéricos e ao porto de Angra nos séculos XVI e XVII.
Mais uma forma, decerto, de chamar a atenção
das entidades competentes não apenas para os invulgares testemunhos históricos sob
as águas dos Açores mas também para essoutro espólio que, ao longo dos anos e
sempre com muita dificuldade, o Centro Nacional de Arqueologia
Náutica e Subaquática foi tentando preservar.
Quando responsável pelo Programa ERASMUS, tive ocasião de
enviar estudantes para a Universidade de Zaragoza, a fim de se iniciarem nessas
lides subaquáticas sob a égide da equipa do Professor Manuel Martín-Bueno,
nessa altura pioneira nesse domínio da Arqueologia.
E se todas as
áreas dos oceanos merecem – e têm, de um modo geral – a atenção dos investigadores, uma há que mui
especialmente, pelas suas peculiares características, acicatou a curiosidade: a
Antárctida! Esse imenso continente na sua maior parte coberto de gelo guarda
‘tesouros’, testemunho dessa secular curiosidade; e, por outro
lado, o crescente degelo que está a sofrer, devido ao aumento do chamado
‘aquecimento global’ da Terra, traz para todos a maior preocupação. Não admira, pois, que haja equipas
multidisciplinares (entre as quais se incluem investigadores portugueses) a
estudá-la.
Ora, foi no
seio da equipa de Martín-Bueno que se publicou, o ano passado, a tese de
doutoramento de Elena Martín-Cancela intitulada Trás las Huellas del San Telmo – Contexto, Historia y Arqueología en la Antártida. Saído
das Prensas de la Universidad de Zaragoza (ISBN 978-84-17358-23-5), é o volume
54 da série Monografias Arqueológicas. Fig. 1.
Diga-se, para
já, que são quase 400 páginas em formato A4, ricas da mais variada informação, na medida em que, como se verá de imediato, não
há somente o relato das (já longínquas, diríamos!...) campanhas arqueológicas
de 1992-1993, 1993-1994 e 1994-1995, mas todo o necessário enquadramento dessa
actividade – e esse é, desde logo, imprescindível manancial para a melhor
compreender.
Uma
panorâmica da obra ajudará a melhor se entender o que acabo de afirmar.
Trata o
capítulo I do continente antárctico, o horizonte geográfico em que tudo vai
desenrolar-se. As características físicas (os dias e as noites, o clima, a
hidrografia…), a fauna aquática e terrestre (Fig. 2 e 3), os recursos naturais e… os «nativos
antárcticos»! Como é? – perguntar-se-á – Nativos? Explica-se:
«Não existe
uma população antárctica
propriamente dita; o certo é que, ao longo dos anos, aí foram ocorrendo
nascimentos», no seio das famílias de cientistas e de militares dos mais
diversos países que aí se estabeleceram (p. 34).
Ainda nesse
capítulo se dá conta do que foi acontecendo quanto à organização do território desde o Tratado de Tordesilhas
(1494) até ao estabelecimento da prioridade científica, à criação do SCAR – Scientific Commitee on Antartic
Research (Fig. 4) e às perspectivas que o
‘turismo antárctico’ abriu.
O interesse
pela Antárctida não é de hoje. Importava, por conseguinte, contar o que foi acontecendo.
Logo o astrónomo egípcio Ptolemeu deduzira, no século II da nossa era, «que,
para o correcto equilíbrio geodinâmico, tinha de existir uma porção de terra no Sul do planeta» (p. 75). Houve,
depois, a corrida pela «conquista do Pólo Sul» (Amundsen, 14 de Dezembro de
1911), as primeiras expedições e as descrições que delas sobreviveram, as rotas
possíveis de oeste para este e vice-versa… Enfim, uma história da
Antárctida, aqui bem documentada, nas p. 75-122, com fotografias antigas, cópia
de manuscritos, quadro de datas mais significativas…
A história do
navio San Telmo é contada no
capítulo 3 (p. 123-199). Precedem-na, porém, as páginas que a enquadram: o que
se sabe acerca da construção naval do século XVIII; as vicissitudes dos
reinados de Carlos III e Carlos IV (1788-1808) – recorde-se que foi em 1805
que se deu a célebre batalha de Trafalgar (da França e Espanha contra o Reino
Unido); as cinco fases cronológicas da construção
de navios no decorrer do século XVIII; os nomes dos que, nesse domínio, fizeram
história em Espanha; como eram os navios (e, aqui, naturalmente, às ilustrações
se dá o maior relevo); e, finalmente, o que se sabe do navio San Telmo, até à sua última viagem:
zarpara de Cádis a 11 de Maio de 1819 com destino ao Pacífico e, a 4 de
Setembro de 1819, «ficou sozinho, abandonado à sua sorte no meio das águas que
tantas vidas já antes haviam ceifado» (p. 194). Só, porém, a 27 de Dezembro de 1821, a mandado do Rei, se
dá baixa oficial do navio e dos «homens que nele viajavam».
Aqui entra, pois,
a Arqueologia, numa tentativa – parcialmente conseguida! – de se encontrar
o que restaria do navio e do que se poderia, enfim, concluir, acerca do que efectivamente se passara. É o Projecto
San Telmo, em que esta obra se integra. E o capítulo 4 (p. 201-223) versa
precisamente sobre o que foram as campanhas levadas a cabo com essa finalidade,
não sem, antes, se ter falado do nascimento da Arqueologia Subaquática e da sua
aplicação na Antárctida.
Tem o capítulo
5 («A Constatação de uma teoria»)
dois subcapítulos em jeito de conclusões: ‘Reflexões sobre o cenário
gelado’ e ‘O San Telmo e
a sua tripulação como descobridores
da Antárctida’.
Na verdade,
os achados já feitos confirmam que o navio San
Telmo, «já com avarias importantes e muito danificado após as
tormentas que o haviam afastado do resto dos navios da Divisão do Mar do Sul,
chegou às imediações da Ilha Livingston. Os tripulantes que porventura caíram à
água nessas latitudes pereceram irremediavelmente, por congelação. Os demais, que lograram alcançar terra,
porventura nalguma barca auxiliar, serviram-se dos poucos víveres que restavam
a bordo». Pensa-se que poderão ter querido sair dali, mas as correntes, as
águas geladas, as inúmeras ilhas e ilhotas à volta e, de modo especial, a falta
de alimentos tê-los-ão feito sucumbir.
Vem na pág. 230, a preceder uma magnífica
fotografia de pôr-do-sol, a conclusão deduzida de toda a investigação feita:
«Nos
encontramos en disposición de asegurar que fueron los españoles los primeros en
poner pie en la Antártida».
Por
tal motivo, conclui Elena Martín-Cancela, «la gloria de su descubrimiento, a
pesar de ser fortuito e involuntario, debería serles reconocida».
E este seu trabalho
o apresenta como «humilde homenaje al San
Telmo, a Rosendo Porlier, a Joaquín Toledo y a toda su tripulación».
Porlier foi o brigadeiro e Toledo o capitão do navio.
Importa,
contudo, voltar atrás, ao primeiro subcapítulo acerca
do cenário gelado. Valerá a pena reler, a fim de melhor se compreenderem, diz a
Autora, «as características destes projectos no seio do conceito global das Humanidades
em que se inclui a História e, obviamente, a Arqueologia: estão muito longe de
parecerem… humanos ou, pelo menos, não o são totalmente!» E explica (não
resisto a não transcrever duas passagens, da p. 226):
– «Um
bom cozinheiro e uma alimentação
adequada, além de um lugar para dormir seco, são a chave para o bom funcionamento
tanto humano como científico de uma campanha. O sono e o estômago são palavras-chave
com que não se pode brincar».
– «Não
há horários na Antárctida. Quando há bom tempo, trabalha-se; e não se trabalha
quando o tempo o não permite».
– «Na Antárctida,
todas as imagens, fotográficas ou não, são tiradas por todos nos mesmos dias:
quando há sol e não há vento ou temporal. Daí as mensagens idílicas, falsos, de
que ali ‘todo es coser y cantar’».
– E,
por fim, a varinha mágica consignada no cartaz da base argentina Marambio, na península
antárctica: «Não te espantes se queres ir; não te admires se tiveres vontade de
voltar».
Um mundo,
este, o da Antárctida; outro, não menos aliciante,
o da Arqueologia Subaquática. E, naturalmente, o voto: que os governos, todos,
mormente aqueles cujos territórios incluem plataformas marítimas, olhem para
elas não exclusivamente do ponto de vista económico, mas tenham plena consciência
da importância histórico-cultural que os seus fundos podem albergar e que ajam
em consequência, apoiando devidamente as iniciativas científicas com vista à
sua preservação, atendendo, até, a
que, nos nossos dias, inclusive a vertente turística, desde que devidamente enquadrada,
se está a alcandorar relevante.
A obra de
Elena Martín-Cancela resulta, por conseguinte, deveras significativa no quadro
dos muitos aspectos em que a investigação
da Arqueologia Subaquática ora se movimenta, mostrando também quanto, em todos
os quadrantes, as perspectivas multidisciplinares se afirmam imprescindíveis,
com resultados de excelência.
José d’Encarnação
Publicado em Cyberjornal, edição
de 04-05-2019:
http://www.cyberjornal.net/cultura/cultura/varios-cultura/a-arqueologia-no-reino-da-antarctida
Capa do livro Tras las Huellas del San Telmo
Fig. 2 - A fauna
Fig. 3 – A convivência
entre os arqueólogos e os lobos-marinhos
Fig. 4