_______________________________________________Lamentável. Tristíssimo. Mas não me surpreende.É uma das consequências da virtuosa "conservação pelo registo". Também aqui pelo Norte (prefiro não individualizar casos), muitos trabalhos arqueológicos (para não dizer a generalidade) não são feitos para obter conhecimento científico: fazem-se para resolver "problemas" dos promotores imobiliários. Com uma salvaguarda minimalista (por exemplo, com o absurdo critério da escavação por cota de obra - ou deveria dizer quota de obra?), gastam-se uns tostões na arqueologia, estuda-se 0, publica-se menos, e os promotores vendem apartamentos por milhões à custa das ruínas e das "pré-existências".De quem é a responsabilidade? Ora aí está um bom tema para debate. Contem comigo.Mas isto é só uma opinião, talvez até pouco popular.
António Manuel S. P. Silva
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De: archport-bounces@ci.uc.pt <archport-bounces@ci.uc.pt> em nome de Carlos Jorge Gonçalves Soares Fabião <cfabiao@campus.ul.pt>
Enviado: sábado, 8 de janeiro de 2022 18:19
Para: archport <archport@ci.uc.pt>; histport <histport@uc.pt>; José d'Encarnação <jde@fl.uc.pt>; Museum <museum@ci.uc.pt>; porras <pporras@der.ucm.es>
Assunto: [Archport] Éstupefacção / Indignação sobre um dos "mais históricos e exclusivos apartamentos de Lisboa"Estupefacção / Indignação:
O algoritmo do Google presenteou-me com este incrível anúncio:
“Ruínas do Teatro Romano de Lisboa do século IV integram Loft totalmente exclusivo à venda por perto de 1 milhão de euros. Este é um dos mais históricos e exclusivos apartamentos em Lisboa.”
As ruínas do teatro romano de Felicitas Iulia Olisipo foram identificadas em 1798, no contexto dos desaterros para a reconstrução da cidade de Lisboa, depois do grande terramoto de 1755. Numa época em que se afirmava o gosto pela arquitectura clássica, Francisco Fabri, arquitecto italiano o serviço da coroa portuguesa propôs no ano seguinte (1799) o embargo das obras de reconstrução naquela área e a conservação in situ das ruínas (a primeira proposta do género que se fez em Portugal). A longa conjuntura turbulenta e conflitiva da primeira metade do nosso século XIX inviabilizou o plano.
As ruínas do teatro jazeram quase esquecidas até aos meados do século XX, quando sofreram novas afectações, numa época em que já não estavam à vista.
Recentemente, Cristina Leite divulgou um notável conjunto de documentos do acervo do Arquitecto Cassiano Branco sobre o teatro romano, realizados, note-se, quando nada era já visível. Cassiano Branco manifestou-se em 1960 contra a construção de um novo imóvel na área onde se encontrariam as ruínas do edifício cénico, sugerindo que a Câmara Municipal de Lisboa adquirisse e demolisse os imóveis dessa área, para recuperar e restaurar o teatro romano, chegando mesmo a esboçar um plano de enquadramento para as ruínas. Veja-se:
http://geo.cm-lisboa.pt/fileadmin/GEO/Imagens/Investigacao/artigo_cristinaleite.pdf
Ignoradas as propostas do Arquitecto e construído o edifício, começou em 1964 a tentativa de recuperação, valorização, conservação e divulgação das ruínas, primeiro por iniciativa de Fernando de Almeida, a partir da Faculdade de Letras de Lisboa, com os seus alunos, depois pela continuada e persistente batalha de Irisalva Moita, nem sempre bem-sucedida.
Ainda assim, as ruínas foram classificadas como Imóvel de Interesse Público, por Decreto de 1967, e publicada a sua ZEP (Zona Especial de Protecção), por Portaria de 1969.
Os avanços e recuos continuaram, aparentemente porque nenhum responsável (?) político alguma vez entendeu que Lisboa é a única capital europeia (para além de Roma, bem entendido) que possui um teatro romano, ou seja, uma indiscutível mais-valia em múltiplas dimensões.
Finalmente, já neste século, em 2001, foi inaugurado o Museu do Teatro Romano de Lisboa. Um projecto modesto, face à dimensão da área abrangida pelo monumento, mas um excelente equipamento que poderia ser um bom ponto de partida para, paulatinamente, se reconfigurar a área, de modo a valorizar essa magnífica pré-existência.
Lamentavelmente, reabilitação urbana em Lisboa é sinónimo de fazer tábua rasa das preexistências, conservando aqui e ali uns “apontamentos de memória histórica”, para apaziguar consciências. Não vale a pena voltar a falar do exemplo de Cartagena, mas merece destaque o facto de nesse já longínquo ano de 1960, Cassiano Branco ter proposto o que mais tarde se fez na cidade andaluza: musealizar as ruínas do teatro romano, realizando um vasto plano de requalificação urbana da envolvente.
Ao longo das décadas de 70 e 80, quando se debateu periodicamente o tema do teatro romano e da sua recuperação, muita agitação houve, sobretudo com as queixas dos moradores sobre eventuais despejos e realojamentos. Os mais velhos recordarão que um dos mais acérrimos (e mediáticos) adversários do projecto foi o poeta Ary dos Santos, morador na Rua da Saudade, justamente em um dos prédios que merecia ser demolido, aquele que se fez em 1960 e cuja construção Cassiano Branco deplorou.
Eram atendíveis as queixas dos residentes, pessoas idosas, desde sempre moradores naquela zona. Sempre pensei que o tempo poderia vir a resolver naturalmente a questão.
Eis que surge a novidade. Não se trata já dos moradores, mas de projectos imobiliários de evidente teor especulativo. O caso está para além de tudo o que se pudesse temer ou mesmo imaginar. Um Imóvel de Interesse Público, devidamente classificado, com ZEP publicada, é literalmente atropelado por um projecto imobiliário. Como foi possível? Como se licenciou?
Já não pergunto como pôde alguém propor-se a projectá-lo ou a fazê-lo, porque sabemos bem da desigual repartição do Bom Senso e Bom Gosto entre o Género Humano.
Como se admite que a memória histórica de uma cidade se venda assim, por bom preço, note bem, porque se está a pagar não somente o “loft”, mas a memória histórica, a alma, a dignidade da capital do país!...
Amargamente, veio-me à memória um velho (?) tema de Sérgio Godinho: O Charlatão.
“Na ruela de má fama, faz negócio o charlatão (…) entre a rua e o país vai o passo de um anão (…) e o trono é do charlatão”…
Estávamos então em ditadura, agora em democracia, mas parece que o trono voltou a ser do charlatão.
Quando uma cidade e um país estão dispostos a vender a sua herança cultural, memória histórica, alma e dignidade, sendo somente uma questão de preço, algo vai mal.
Pela minha parte, pergunto-me: o que ando eu aqui a fazer?
Carlos Fabião
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