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Re: [Archport] Éstupefacção / Indignação sobre um dos "mais históricos e exclusivos apartamentos de Lisboa"

Subject :   Re: [Archport] Éstupefacção / Indignação sobre um dos "mais históricos e exclusivos apartamentos de Lisboa"
From :   João Senna-Martinez <sennamartinez@gmail.com>
Date :   Sun, 9 Jan 2022 17:24:09 +0000

Boa Tarde a Tod@s,

Que tal lembrar ao Sr. Presidente da Câmara que pode sempre tentar vender o património da cidade à Troika?
Infelizmente estes são os interesses imobiliários que temos e os media seguem-lhes as pegadas...
Não podia estar mais de acordo com o Carlos Fabião, embora este não seja, segundo o Clementino Amaro o edifício do Ari dos Santos que é propriedade camarária.
Cumprimentos a tod@s,

João Carlos de Senna-Martinez
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
School of Arts and Humanities
Professor Associado (aposentado)
Investigador Integrado do Centro de Arqueologia (Uniarq)
Universidade de Lisboa – University of Lisbon
1600-214 LISBOA - PORTUGAL
http://www.letras.ulisboa.pt/images/email-assinatura/logo-ul-flul.png


On Sun, Jan 9, 2022 at 1:05 PM vasco gil mantas <vsmantas@gmail.com> wrote:
Caras e caros amigos

Tudo isto leva  a uma grande desilusão, como aconteceu com tantas outras coisas neste país que fui vivendo e onde agora volto a estar só. Já não consigo perceber (ou consigo bem de mais no sistema economicista em que vivemos...) o que se passa em Lisboa, onde tudo se compra e vende conforme convém.
Por isso terminei um artigo publicado há uns dois anos com uma referência (porque se tratava de Lisboa), a Cesário Verde no seu "Sentimento de um Ocidental" a propósito dos hotéis de luxo... Estou cansado de ver destruir monumentos (e não só na Síria) mas espero, talvez uma última vez, que os arqueólogos e os historiadores, se ainda é lícito fazer tal distinção, se consigam unir, não por razões de oposição política, como já aconteceu e não há muito tempo, mas para garantir a defesa do património arqueológico, tão sacrificado às novas agriculturas e ao mito do progresso garantido pelo "turismo" , infelizmente tantas vezes com cobertura de quem tinha obrigação legal e moral de o proteger.  
A necessidade de um debate interno e de uma grande discussão pública é inadiável.

Cordialmente
                                                                                                      Vasco Gil Mantas

Susana Martinez <susanvic11@hotmail.com> escreveu no dia domingo, 9/01/2022 à(s) 12:30:
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Pois, infelizmente nem Portugal nem muitos outros países da zona euro têm uma opinião pública respeitadora da arqueologia ... não sei como é possível que no século XXI se continue a comparar-nos nos jornais,  p.ex., com o aventureiro Indiana Jones ... Tristíssimo!! ... Mesmo quando a comunidade arqueológica, desde diferentes âmbitos, tem vindo a realizar uma importante ação pedagógica, sem descanso, pelo menos desde os anos 80 do século XX ... E não somos nós que estamos a falhar porque não "vendemos" bem a nossa profissão ... O que falha é este sistema que vende apartamentos de luxo ”tuneados" com as "sobras" do teatro romano de Lisboa... e contra isso que se pode fazer? 

Susana Martínez
Arqueóloga subaquática



From: archport-bounces@ci.uc.pt <archport-bounces@ci.uc.pt> on behalf of Carlos Jorge Gonçalves Soares Fabião <cfabiao@campus.ul.pt>
Sent: Saturday, January 8, 2022 7:19:15 PM
To: archport <archport@ci.uc.pt>; histport <histport@uc.pt>; José d'Encarnação <jde@fl.uc.pt>; Museum <museum@ci.uc.pt>; porras <pporras@der.ucm.es>
Subject: [Archport] Éstupefacção / Indignação sobre um dos "mais históricos e exclusivos apartamentos de Lisboa"
 

Estupefacção / Indignação:

O algoritmo do Google presenteou-me com este incrível anúncio:

https://lifestyle.sapo.pt/amp/casa-e-lazer/noticias-casa-e-lazer/artigos/ruinas-do-teatro-romano-de-lisboa-do-seculo-iv-integram-loft-totalmente-exclusivo-a-venda-por-perto-de-1-milhao-de-euros

“Ruínas do Teatro Romano de Lisboa do século IV integram Loft totalmente exclusivo à venda por perto de 1 milhão de euros. Este é um dos mais históricos e exclusivos apartamentos em Lisboa.”

 

As ruínas do teatro romano de Felicitas Iulia Olisipo foram identificadas em 1798, no contexto dos desaterros para a reconstrução da cidade de Lisboa, depois do grande terramoto de 1755. Numa época em que se afirmava o gosto pela arquitectura clássica, Francisco Fabri, arquitecto italiano o serviço da coroa portuguesa propôs no ano seguinte (1799) o embargo das obras de reconstrução naquela área e a conservação in situ das ruínas (a primeira proposta do género que se fez em Portugal). A longa conjuntura turbulenta e conflitiva da primeira metade do nosso século XIX inviabilizou o plano.

As ruínas do teatro jazeram quase esquecidas até aos meados do século XX, quando sofreram novas afectações, numa época em que já não estavam à vista.

Recentemente, Cristina Leite divulgou um notável conjunto de documentos do acervo do Arquitecto Cassiano Branco sobre o teatro romano, realizados, note-se, quando nada era já visível. Cassiano Branco manifestou-se em 1960 contra a construção de um novo imóvel na área onde se encontrariam as ruínas do edifício cénico, sugerindo que a Câmara Municipal de Lisboa adquirisse e demolisse os imóveis dessa área, para recuperar e restaurar o teatro romano, chegando mesmo a esboçar um plano de enquadramento para as ruínas. Veja-se:

http://geo.cm-lisboa.pt/fileadmin/GEO/Imagens/Investigacao/artigo_cristinaleite.pdf

Ignoradas as propostas do Arquitecto e construído o edifício, começou em 1964 a tentativa de recuperação, valorização, conservação e divulgação das ruínas, primeiro por iniciativa de Fernando de Almeida, a partir da Faculdade de Letras de Lisboa, com os seus alunos, depois pela continuada e persistente batalha de Irisalva Moita, nem sempre bem-sucedida.

Ainda assim, as ruínas foram classificadas como Imóvel de Interesse Público, por Decreto de 1967, e publicada a sua ZEP (Zona Especial de Protecção), por Portaria de 1969.

Os avanços e recuos continuaram, aparentemente porque nenhum responsável (?) político alguma vez entendeu que Lisboa é a única capital europeia (para além de Roma, bem entendido) que possui um teatro romano, ou seja, uma indiscutível mais-valia em múltiplas dimensões.

Finalmente, já neste século, em 2001, foi inaugurado o Museu do Teatro Romano de Lisboa. Um projecto modesto, face à dimensão da área abrangida pelo monumento, mas um excelente equipamento que poderia ser um bom ponto de partida para, paulatinamente, se reconfigurar a área, de modo a valorizar essa magnífica pré-existência.

Lamentavelmente, reabilitação urbana em Lisboa é sinónimo de fazer tábua rasa das preexistências, conservando aqui e ali uns “apontamentos de memória histórica”, para apaziguar consciências. Não vale a pena voltar a falar do exemplo de Cartagena, mas merece destaque o facto de nesse já longínquo ano de 1960, Cassiano Branco ter proposto o que mais tarde se fez na cidade andaluza: musealizar as ruínas do teatro romano, realizando um vasto plano de requalificação urbana da envolvente.

Ao longo das décadas de 70 e 80, quando se debateu periodicamente o tema do teatro romano e da sua recuperação, muita agitação houve, sobretudo com as queixas dos moradores sobre eventuais despejos e realojamentos. Os mais velhos recordarão que um dos mais acérrimos (e mediáticos) adversários do projecto foi o poeta Ary dos Santos, morador na Rua da Saudade, justamente em um dos prédios que merecia ser demolido, aquele que se fez em 1960 e cuja construção Cassiano Branco deplorou.

Eram atendíveis as queixas dos residentes, pessoas idosas, desde sempre moradores naquela zona. Sempre pensei que o tempo poderia vir a resolver naturalmente a questão.

Eis que surge a novidade. Não se trata já dos moradores, mas de projectos imobiliários de evidente teor especulativo. O caso está para além de tudo o que se pudesse temer ou mesmo imaginar. Um Imóvel de Interesse Público, devidamente classificado, com ZEP publicada, é literalmente atropelado por um projecto imobiliário. Como foi possível? Como se licenciou?

Já não pergunto como pôde alguém propor-se a projectá-lo ou a fazê-lo, porque sabemos bem da desigual repartição do Bom Senso e Bom Gosto entre o Género Humano.  

Como se admite que a memória histórica de uma cidade se venda assim, por bom preço, note bem, porque se está a pagar não somente o “loft”, mas a memória histórica, a alma, a dignidade da capital do país!...

Amargamente, veio-me à memória um velho (?) tema de Sérgio Godinho: O Charlatão.

“Na ruela de má fama, faz negócio o charlatão (…) entre a rua e o país vai o passo de um anão (…) e o trono é do charlatão”… 

Estávamos então em ditadura, agora em democracia, mas parece que o trono voltou a ser do charlatão.

Quando uma cidade e um país estão dispostos a vender a sua herança cultural, memória histórica, alma e dignidade, sendo somente uma questão de preço, algo vai mal.

Pela minha parte, pergunto-me: o que ando eu aqui a fazer?

 

Carlos Fabião  


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