Dr. Mantas
Estamos todos com os mesmos sentimentos em relação a estas situações de destruição, tantas e cada vez mais, de desresponsabilização politica e social, de inercia, e até de um certo remar ao contrário por parte dos responsáveis públicos e políticos, dado que nestes casos, como noutros, a economia. o turismo, a agricultura agressiva, no fundo, o capitalismo extremo e ultra liberal, estão sempre acima de todos os outros valores (culturais, humanistas, políticos, etc.).
Há soluções? poucas. As associações, se fossem fortes e não fossem sistematicamente perseguidas, pressionadas, ocultadas e anuladas, podiam ter alguma influencia. E a educação básica, que, infelizmente, não existe, aliás, existe é em contrário, ou seja, cada vez mais os mais jovens são ensinados a estarem contra tudo o que é património, cultura, valores. Ou seja, estamos perdidos.
Ou há uma revolução ou tudo se vai perder. Ou melhor, tudo está já perdido. Diariamente desaparecem marcas fundamentais do nosso património. Não são apenas monumentos classificados e importantes, não é apenas nas cidades. São sobretudo as pequenas coisas, que no seu conjunto constituem os nossos valores, as nossas memórias e a nossa cultura. No campo, no interior, desaparecem todos os dias caminhos, cursos de água, charcas, poços. noras, sistemas de rega, tanques, condutas de rega por gravidade, portos, pontes, pontões, marcos, muros de pedra, pedreiras e pedregais, barrocais, arvores, alinhamentos arbóreos, olivais tradicionais, vinhas velhas, galerias ripículas, hortas e hortejos, quintas e matagais, silvados, arvores e pomares tradicionais como laranjais, alfarrobeiras, romãzeiras, marmeleiros, e com isto morre também toda a biodiversidade, enfim, desaparece tudo. Até os montes e vales são aplanados para deixar passar os monstros da rega. E também desaparecem os costumes e as tradições, as rezas, as crenças, as festas populares, as profissões, os ofícios, os saberes, a agricultura de subsistência, enfim, tudo o que tem feito o mundo como o conhecemos. Caminhamos rapidamente para a barbárie. Era importante reunir todos os que ainda percebem estas coisas, todos os grupos e associações que podem fazer pressão, e fazer um grande congresso, um grande evento nacional, que reúna todos os especialistas e atentos a estas questões, recorrendo a todos os recursos disponíveis, para denunciar e publicitar todas estas questões, e as fazer chegar junto de toda a gente, sobretudo das escolas, que ainda podem ser as instituições que podem transmitir valores aos jovens. Por mim, estou disponível para colaborar na organização de um movimento nacional de resistência à barbárie.
Completamente enraivado
Jorge Cruz
Data: Sun, 9 Jan 2022 13:04:32 +0000
Assunto: Re: [Archport] Éstupefacção / Indignação sobre um dos "mais históricos e exclusivos apartamentos de Lisboa"
Caras e caros amigos
Tudo isto leva a uma grande desilusão, como aconteceu com tantas outras coisas neste país que fui vivendo e onde agora volto a estar só. Já não consigo perceber (ou consigo bem de mais no sistema economicista em que vivemos...) o que se passa em Lisboa, onde tudo se compra e vende conforme convém.
Por isso terminei um artigo publicado há uns dois anos com uma referência (porque se tratava de Lisboa), a Cesário Verde no seu "Sentimento de um Ocidental" a propósito dos hotéis de luxo... Estou cansado de ver destruir monumentos (e não só na Síria) mas espero, talvez uma última vez, que os arqueólogos e os historiadores, se ainda é lícito fazer tal distinção, se consigam unir, não por razões de oposição política, como já aconteceu e não há muito tempo, mas para garantir a defesa do património arqueológico, tão sacrificado às novas agriculturas e ao mito do progresso garantido pelo "turismo" , infelizmente tantas vezes com cobertura de quem tinha obrigação legal e moral de o proteger.
A necessidade de um debate interno e de uma grande discussão pública é inadiável.
Cordialmente
Vasco Gil Mantas
Pois, infelizmente nem Portugal nem muitos outros países da zona euro têm uma opinião pública respeitadora da arqueologia ... não sei como é possível que no século XXI se continue a comparar-nos nos jornais, p.ex., com o aventureiro Indiana Jones ... Tristíssimo!! ... Mesmo quando a comunidade arqueológica, desde diferentes âmbitos, tem vindo a realizar uma importante ação pedagógica, sem descanso, pelo menos desde os anos 80 do século XX ... E não somos nós que estamos a falhar porque não "vendemos" bem a nossa profissão ... O que falha é este sistema que vende apartamentos de luxo ”tuneados" com as "sobras" do teatro romano de Lisboa... e contra isso que se pode fazer?
Susana Martínez
Arqueóloga subaquática
Estupefacção / Indignação:
O algoritmo do Google presenteou-me com este incrível anúncio:
https://lifestyle.sapo.pt/amp/casa-e-lazer/noticias-casa-e-lazer/artigos/ruinas-do-teatro-romano-de-lisboa-do-seculo-iv-integram-loft-totalmente-exclusivo-a-venda-por-perto-de-1-milhao-de-euros
“Ruínas do Teatro Romano de Lisboa do século IV integram Loft totalmente exclusivo à venda por perto de 1 milhão de euros. Este é um dos mais históricos e exclusivos apartamentos em Lisboa.”
As ruínas do teatro romano de Felicitas Iulia Olisipo foram identificadas em 1798, no contexto dos desaterros para a reconstrução da cidade de Lisboa, depois do grande terramoto de 1755. Numa época em que se afirmava o gosto pela arquitectura clássica, Francisco Fabri, arquitecto italiano o serviço da coroa portuguesa propôs no ano seguinte (1799) o embargo das obras de reconstrução naquela área e a conservação in situ das ruínas (a primeira proposta do género que se fez em Portugal). A longa conjuntura turbulenta e conflitiva da primeira metade do nosso século XIX inviabilizou o plano.
As ruínas do teatro jazeram quase esquecidas até aos meados do século XX, quando sofreram novas afectações, numa época em que já não estavam à vista.
Recentemente, Cristina Leite divulgou um notável conjunto de documentos do acervo do Arquitecto Cassiano Branco sobre o teatro romano, realizados, note-se, quando nada era já visível. Cassiano Branco manifestou-se em 1960 contra a construção de um novo imóvel na área onde se encontrariam as ruínas do edifício cénico, sugerindo que a Câmara Municipal de Lisboa adquirisse e demolisse os imóveis dessa área, para recuperar e restaurar o teatro romano, chegando mesmo a esboçar um plano de enquadramento para as ruínas. Veja-se:
http://geo.cm-lisboa.pt/fileadmin/GEO/Imagens/Investigacao/artigo_cristinaleite.pdf
Ignoradas as propostas do Arquitecto e construído o edifício, começou em 1964 a tentativa de recuperação, valorização, conservação e divulgação das ruínas, primeiro por iniciativa de Fernando de Almeida, a partir da Faculdade de Letras de Lisboa, com os seus alunos, depois pela continuada e persistente batalha de Irisalva Moita, nem sempre bem-sucedida.
Ainda assim, as ruínas foram classificadas como Imóvel de Interesse Público, por Decreto de 1967, e publicada a sua ZEP (Zona Especial de Protecção), por Portaria de 1969.
Os avanços e recuos continuaram, aparentemente porque nenhum responsável (?) político alguma vez entendeu que Lisboa é a única capital europeia (para além de Roma, bem entendido) que possui um teatro romano, ou seja, uma indiscutível mais-valia em múltiplas dimensões.
Finalmente, já neste século, em 2001, foi inaugurado o Museu do Teatro Romano de Lisboa. Um projecto modesto, face à dimensão da área abrangida pelo monumento, mas um excelente equipamento que poderia ser um bom ponto de partida para, paulatinamente, se reconfigurar a área, de modo a valorizar essa magnífica pré-existência.
Lamentavelmente, reabilitação urbana em Lisboa é sinónimo de fazer tábua rasa das preexistências, conservando aqui e ali uns “apontamentos de memória histórica”, para apaziguar consciências. Não vale a pena voltar a falar do exemplo de Cartagena, mas merece destaque o facto de nesse já longínquo ano de 1960, Cassiano Branco ter proposto o que mais tarde se fez na cidade andaluza: musealizar as ruínas do teatro romano, realizando um vasto plano de requalificação urbana da envolvente.
Ao longo das décadas de 70 e 80, quando se debateu periodicamente o tema do teatro romano e da sua recuperação, muita agitação houve, sobretudo com as queixas dos moradores sobre eventuais despejos e realojamentos. Os mais velhos recordarão que um dos mais acérrimos (e mediáticos) adversários do projecto foi o poeta Ary dos Santos, morador na Rua da Saudade, justamente em um dos prédios que merecia ser demolido, aquele que se fez em 1960 e cuja construção Cassiano Branco deplorou.
Eram atendíveis as queixas dos residentes, pessoas idosas, desde sempre moradores naquela zona. Sempre pensei que o tempo poderia vir a resolver naturalmente a questão.
Eis que surge a novidade. Não se trata já dos moradores, mas de projectos imobiliários de evidente teor especulativo. O caso está para além de tudo o que se pudesse temer ou mesmo imaginar. Um Imóvel de Interesse Público, devidamente classificado, com ZEP publicada, é literalmente atropelado por um projecto imobiliário. Como foi possível? Como se licenciou?
Já não pergunto como pôde alguém propor-se a projectá-lo ou a fazê-lo, porque sabemos bem da desigual repartição do Bom Senso e Bom Gosto entre o Género Humano.
Como se admite que a memória histórica de uma cidade se venda assim, por bom preço, note bem, porque se está a pagar não somente o “loft”, mas a memória histórica, a alma, a dignidade da capital do país!...
Amargamente, veio-me à memória um velho (?) tema de Sérgio Godinho: O Charlatão.
“Na ruela de má fama, faz negócio o charlatão (…) entre a rua e o país vai o passo de um anão (…) e o trono é do charlatão”…
Estávamos então em ditadura, agora em democracia, mas parece que o trono voltou a ser do charlatão.
Quando uma cidade e um país estão dispostos a vender a sua herança cultural, memória histórica, alma e dignidade, sendo somente uma questão de preço, algo vai mal.
Pela minha parte, pergunto-me: o que ando eu aqui a fazer?
Carlos Fabião
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