Transcrição do artigo do médico
psiquiatra Pedro Afonso, publicado no Público, 2010 A saúde mental dos portugueses Alguns dedicam-se obsessivamente aos
números e às estatísticas esquecendo que a sociedade é feita de pessoas. Recentemente, ficámos a saber,
através do primeiro estudo epidemiológico nacional de Saúde Mental, que
Portugal é o país da Europa com a maior prevalência de
doenças mentais na população. No último ano, um em cada cinco
portugueses sofreu de uma doença psiquiátrica (23%) e quase metade (43%) já
teve uma destas perturbações durante a vida. Interessa-me a saúde mental dos
portugueses porque assisto com impotência a uma sociedade perturbada e doente
em que violência, urdida nos jogos e na televisão, faz
parte da ração diária das crianças e adolescentes. Neste redil de insanidade, vejo jovens
infantilizados incapazes de construírem um projecto de vida, escravos dos seus
insaciáveis desejos e adulados por pais que satisfazem todos os seus caprichos,
expiando uma culpa muitas vezes imaginária. Na escola, estes jovens adquiriram
um estatuto de semideus, pois todos terão de fazer um esforço sobrenatural para
lhes imprimirem a vontade de adquirir conhecimentos, ainda que estes não o
desejem. É natural que assim seja, dado que a
actual sociedade os inebria de direitos, criando-lhes a ilusão absurda de que
podem ser mestres de si próprios. Interessa-me a saúde mental dos
portugueses porque, nos últimos quinze anos, o divórcio quintuplicou,
alcançando 60 divórcios por cada 100 casamentos (dados de 2008). As crises conjugais são também um
reflexo das crises sociais. Se não houver vínculos estáveis
entre seres humanos não existe uma sociedade forte, capaz de criar empresas sólidas
e fomentar a prosperidade. Enquanto o legislador se entretém maquinalmente
a produzir leis que entronizam o divórcio sem culpa, deparo-me com mulheres
compungidas, reféns do estado de alma dos ex-cônjuges para lhes garantirem o
pagamento da miserável pensão de alimentos. Interessa-me a saúde mental dos portugueses
porque se torna cada vez mais difícil, para quem tem filhos, conciliar o
trabalho e a família. Nas empresas, os directores insanos
consideram que a presença prolongada no trabalho é sinónimo de maior
compromisso e produtividade. Portanto é fácil
perceber que, para quem perde cerca de três horas nas deslocações diárias entre
o trabalho, a escola e a casa, seja difícil ter tempo para os
filhos. Recordo o rosto de uma mãe marejado de lágrimas e com o coração
dilacerado por andar tão cansada que quase se tornou
impossível brincar com o seu filho de três anos. Interessa-me a saúde mental dos
portugueses porque a taxa de desemprego em Portugal afecta mais de meio milhão
de cidadãos. Tenho presenciado muitos casos de
homens e mulheres que, humilhados pela falta de trabalho, se sentem rendidos e
impotentes perante a maldição da pobreza. Observo as suas mãos, calejadas pelo
trabalho manual, tornadas inúteis, segurando um papel encardido da Segurança
Social. Interessa-me a saúde mental dos
portugueses porque é difícil aceitar que alguém sobreviva dignamente com pouco
mais de 600 euros por mês, enquanto outros, sem mérito e trabalho, se dedicam
impunemente à actividade da pilhagem do erário público. Fito com assombro e complacência os
olhos de revolta daqueles que estão cansados de escutar repetidamente que é
necessário fazer mais sacrifícios quando já há muito foram dizimados pela praga
da miséria. Finalmente, interessa-me a saúde
mental de alguns portugueses com responsabilidades governativas porque se
dedicam obsessivamente aos números e às estatísticas esquecendo que a sociedade
é feita de pessoas. Entretanto, com a sua displicência e
inépcia, construíram um mecanismo oleado que vai inexoravelmente triturando as
mentes sãs de um povo, criando condições sociais
que favorecem uma decadência neuronal colectiva, multiplicando, deste modo, as
doenças mentais. E hesito em prescrever
antidepressivos e ansiolíticos a quem tem o estômago vazio e a cabeça cheia de
promessas de uma justiça que se há-de concretizar; e luto contra o
demónio do desespero, mas sinto uma inquietação culposa diante destes rostos
que me visitam diariamente. Pedro Afonso Médico psiquiatra Isabel
Maria Paiva dos Reis Assistente
Técnico Universidade de Coimbra • Administração Departamento Académico • Divisão Técnico-Pedagógica Apoio Técnico-Pedagógico a Estudantes Deficientes Tel.: +351 239 857 000 | Ext. 389 Este e-mail pretende ser amigo do
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