Caríssimo Pedro,
A certeza de que tudo o que fazemos, ou não fazemos, sobre o que remanesce do passado, seja ele material ou imatetial, é feito, ou não feito, em benefício do presente, esta certeza é tão velha como a dizem ser velha a noite dos tempos escoados (para usar a expressão do "pai fundador" da Pré-Pré-história, Jacques B de Perthes).
Outra certeza iguamente sabermos antiga é a de que estar vivo constitui somente antecâmara de estar morto.
Ora, vistas a tais luzes, porque fazer, ou não fazer, o que quer que seja? De proto a eucariota, de bactéria verde-azul a rinoceronte branco ou humano preto... tudo é contingência, tudo se resume a pouco mais de duas dezenas de ácidos aminados, sucessivamente recombinados.
E, sendo assim, força vilanagem: façam o que queiram com os tijolos do passado, gozem a vossa vidinha como quiserem... porque todos seremos chamados a ser tijolos no futuro.
Será esta a mensagem da sua igreja ?
Luís Raposo
Data: Sun, 9 Jan 2022 14:51:44 +0000
Assunto: [Museum] RUÍNAS ROMANAS. Mas não foi sempre assim?
RUÍNAS ROMANAS…
Mas não foi sempre assim? Os que sucedem, não vivem com os pés em cima dos escombros dos que os antecederam?
Não foi sempre assim desde o início da Vida na Terra há mais de 4 mil milhões de anos (ARN, ADN, célula, “last universal common ancestor of life”, multicelulares, bactérias, arcados, eucariotes, pluricelulares, h.habilis, h.sapiens, etc.)? Não está soterrado, debaixo de cada geração, as gerações que a antecederam --- transformando o que veio do passado num composto mais complexo e integrado?
Inclusive, aquilo a que chamamos “o nosso corpo” não é, afinal, uma cidade de organismos vivos, na qual o que verdadeiramente é humano apenas perfaz 43%, sendo o resto microrganismos do microbioma (Ruth Ley, Max Planck Institute, 2018)? Isto é, mesmo dentro daquilo a que chamamos “nós/eu” há essa transformação do passado em presente, e de ambos em futuro (enquanto houver a capacidade adaptativa de Continuar).
O Património que foi codificado no ADN --- isto é, aquilo que do passado transportamos e está guardado no núcleo das nossas células --- não é a mesma «coisa» do que as «coisas» que existiam antes da codificação. Logo, o trabalho museológico e patrimonial que a Natureza fez antes dos seres humanos aparecerem mostra que sempre houve um soterramento e um desaparecimento das coisas anteriores. Que deu origem a uma transformação das coisas, noutras de outro tipo (de «It» a «Bit», de coisa-objeto a coisa-informação).
Não se trata de coisas do passado, que se mantém inalteradas no presente. Não é uma coabitação, com quotas para cada parte, ficando tudo no mesmo estado inicial, lado-a-lado, em estado sedimentar. É uma transformação daquilo que se era no passado, num nível de complexidade e de organização totalmente diferentes. Exigindo (como mostra a história natural do sistema nervoso central e a biologia molecular da cognição) um «programa de perpetração e coordenação» cada vez mais complexo, capaz de gerir esse aumento de integração (chame-se-lhe: “software”, “algoritmo e equação neural-sináptica”, “mente/cérebro”, ou o que se quiser).
Assim sendo, é legítimo interrogar se o trabalho patrimonial sobre os objetos e materiais que constituem a “época Romana” (ou outra qualquer) continuará a ser corretamente feito se (apenas) desenterrarmos tudo o que existe sobre ela. Em vez de transformarmos essa materialidade em conhecimento (informação), possível de ser codificado pelas gerações que nos sucederão. Isto é, passando-a para uma escala tal, que consegue ser guardada numa sequência bioquímica no ADN dos que sobreviverem.
A geração atual --- e ainda mais as que a sucederão --- talvez já não tolerem viver rodeadas de ruínas e artefactos “Romanos”. Já nem será turístico, emblemático, folclorístico ou diferenciador. Já não haverá sequer uma relação estética e cultural... agradável. Disso, em termos patrimoniais, talvez apenas queiram a lógica e a equação do que isso contribuiu para se ser Humano. Ou seja, tal como desde o início da Vida, todo e qualquer património só será preservado se fôr codificável no sistema de memória e conhecimento que sobreviverá na viagem da Continuidade. Nessa viagem não cabem as coisas (em termos de tamanho, peso e dimensão) tais como eram na sua materialidade quando foram originadas/criadas.
Ou seja, o que necessita de mudar não será o modo como devemos conceber e executar a atual Gestão do Património?
REGIMES E ESCALAS DE TEMPO/ESPAÇO:
Existe, em termos matemáticos, para um tempo/espaço quantificado (R), e para um objeto/facto particular (N), uma qualquer diferença (X) entre [O1, O2, O3], ou [U1, U2, U3], ou [V1, V2, V3]?
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Objeto/Facto
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Uso
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Valor/
Significado
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Passado
Antes
Anterioridade
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O1
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U1
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V1
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Presente
Agora
Contemporaneidade/Coetaneidade
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O2
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U2
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V2
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Futuro
Depois
Posterioridade
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O3
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U3
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V3
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OBJETOS/FACTOS
que são PATRIMÓNIO
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USO
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VALOR
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PATRIMÓNIO: objetos/factos concretos tal como existiam no Passado.
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USO dado no Passado.
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VALOR que tinham no Passado.
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PATRIMÓNIO: objetos/factos concretos que existem no Presente.
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USO dado no Presente.
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VALOR que têm no Presente.
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PATRIMÓNIO: objetos/factos concretos que se consideram para o Projeto que se propõe para o Futuro.
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USO que se quer dar no Futuro com o Projeto que se propõe.
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VALOR que se deseja que venham a ter no Futuro com o Projeto que se propõe.
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“[....] É esse erro que H-P.Jeudi (2001) comete ao querer explicar o valor patrimonial das fábricas desativadas (desmercantilizadas) pelo regime de tempo da época em que estavam ativas, confundindo «objecto», «uso» e «valor patrimonial». Aliás um erro muito frequente nas análises sobre o Património, os Museus, e as Expografias. O valor patrimonial não está alojado na materialidade do objecto (as fábricas, neste caso, de Jeudi), e, portanto, na relação com a perda de valor comercial como Jeudi defende; nem é por Basin & Selim alargarem a escala da análise à globalização capitalista, que evitam o mesmo erro de Jeudi.
A utilização do método comparativo permite evitar a subjetividade relativista característica das Humanidades, e aproximar-nos da validação mais científica das Ciências Sociais. Permitindo constatar que o Património não são os objetos/factos, em si mesmos, sem a relação que estabelecem com a Realidade e com as Pessoas que os escolhem para ser «património». De certa maneira até poderíamos afirmar que uma parte da qualidade patrimonial não está sedeada neles, mas sim na relação que estabelecem com a cognição das Pessoas. O ‘valor patrimonial’ depende do ‘uso’, o qual por sua vez não depende totalmente da materialidade ou do estado do ‘objecto’.” (Pedro Manuel-Cardoso, 15junho2014, “O Tempo e o Espaço do Património em Museologia”, Lista Museum mensagem n.º 11859)
Pedro Manuel-Cardoso
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