Luís Raposo,
Totalmente de acordo com o que diz.
Não é fácil (interiormente, enquanto Pessoas e seres humanos) trabalhar em Património.
É muito mais difícil do que vulgarmente se julga. Porque o nosso trabalho está sempre a tocar naquilo que fomos, somos, e seremos. Está sempre a desconjuntarmo-nos por dentro.
Não nos deixa no conforto e na paz do que somos no presente.
Pedro
Pedro,
Percebo agora melhor o seu argumento e estou inteiramente de acordo.
Na nossa condição de historiadores e patrimonialista tanto temos de ser curadores (uso o termo no seu sentido próprio neo-latino e não no sentido mais em voga agora, anglo-saxónico, equivalente
em bom português de "manageiro" ou manager em inglês) dos bens do passado, como temos de ser com eles barristas do que, para nosso gozo e presunção do gozo dos que hão-de vir, queiramos deixar para o futuro. Fique tudo isso em museus, ou não, é de
somenos. O importante é não cometermos, nem deixarmos banalizar o mal, quer dizer essa ignomínia que muito bem refere, aquela que se permite apropriar privadamente, em nome da mercantilização de tudo, visando o lucro, de bens e memórias que entemos serem
comuns.
Data: Sun, 9 Jan 2022 15:39:45 +0000
Assunto: RE: [Museum] RUÍNAS ROMANAS. Mas não foi sempre assim?
Caro Luís Raposo,
Em parte, tem razão. Noutra parte, acho que não.
É necessário trabalhar arduamente sobre a materialidade do património que herdámos, não deixando que o destruam, até conseguirmos fazer essa passagem para a codificação
que perdurará na Continuidade. Portanto, não estou a defender essa ignomínia, de uma destruição e desprezo ao arbítrio dos interesses imobiliários, políticos e ideológicos de cada circunstância histórica.
O que estou a dizer é que há dois trabalhos, em vez de um apenas. E que, o da preservação da materialidade do património (a que estamos condenados, durante a nossa
geração) não pode demorar eternamente, sem esquecermos o outro (o da codificação). Porque senão, paradoxalmente, estaremos a contribuir para destruir o que pretendemos preservar.
O que dói, é percebermos que todo o esforço que fazemos, não ficará (com pompa e circunstância) nas vitrinas principais dos futuros museus das gerações vindouras.
Apercebermo-nos, que a heroicidade e a popularidade que nos cabe é efémera, e depende do tempo que tivemos para a expor.
Não se trata de diletantismo, mas de consciência e dor. Estamos condenados a combater, mesmo que saibamos que vale apenas para um momento.
E nesse sentido, com os pés mais assentes na nossa efemeridade, podermos ajudar os jovens (e as instituições que lhes dão a formação em património e museologia)
a acrescentarem aos curriculae atuais as necessárias competências científicas e técnicas para gerirem cada vez melhor o Património.
Pedro Manuel-Cardoso
Enviado: 9 de janeiro de 2022 15:12
Assunto: Re: [Museum] RUÍNAS ROMANAS. Mas não foi sempre assim?
A certeza de que tudo o que fazemos, ou não fazemos, sobre o que remanesce do passado, seja ele material ou imatetial,
é feito, ou não feito, em benefício do presente, esta certeza é tão velha como a dizem ser velha a noite dos tempos escoados (para usar a expressão do "pai fundador" da Pré-Pré-história, Jacques B de Perthes).
Outra certeza iguamente sabermos antiga é a de que estar vivo constitui somente antecâmara de estar morto.
Ora, vistas a tais luzes, porque fazer, ou não fazer, o que quer que seja? De proto a eucariota, de bactéria verde-azul
a rinoceronte branco ou humano preto... tudo é contingência, tudo se resume a pouco mais de duas dezenas de ácidos aminados, sucessivamente recombinados.
E, sendo assim, força vilanagem: façam o que queiram com os tijolos do passado, gozem a vossa vidinha como quiserem...
porque todos seremos chamados a ser tijolos no futuro.
Será esta a mensagem da sua igreja ?
Data: Sun, 9 Jan 2022 14:51:44 +0000
Assunto: [Museum] RUÍNAS ROMANAS. Mas não foi sempre assim?
RUÍNAS ROMANAS…
Mas não foi sempre assim? Os que sucedem, não vivem com os pés em cima dos escombros dos que os antecederam?
Não foi sempre assim desde o início da Vida na Terra há mais de 4 mil milhões de anos (ARN, ADN, célula, “last universal common ancestor of life”, multicelulares,
bactérias, arcados, eucariotes, pluricelulares, h.habilis, h.sapiens, etc.)? Não está soterrado, debaixo de cada geração, as gerações que a antecederam --- transformando o que veio do passado num composto mais complexo e integrado?
Inclusive, aquilo a que chamamos “o nosso corpo” não é, afinal, uma cidade de organismos vivos, na qual o que verdadeiramente é humano apenas perfaz 43%, sendo
o resto microrganismos do microbioma (Ruth Ley, Max Planck Institute, 2018)? Isto é, mesmo dentro daquilo a que chamamos “nós/eu” há essa transformação do passado em presente, e de ambos em futuro (enquanto houver a capacidade adaptativa de Continuar).
O Património que foi codificado no ADN --- isto é, aquilo que do passado transportamos e está guardado no núcleo das nossas células --- não é a mesma «coisa» do
que as «coisas» que existiam antes da codificação. Logo, o trabalho museológico e patrimonial que a Natureza fez antes dos seres humanos aparecerem mostra que sempre houve um soterramento e um desaparecimento das coisas anteriores. Que deu origem a uma transformação
das coisas, noutras de outro tipo (de «It» a «Bit», de coisa-objeto a coisa-informação).
Não se trata de coisas do passado, que se mantém inalteradas no presente. Não é uma coabitação, com quotas para cada parte, ficando tudo no mesmo estado inicial,
lado-a-lado, em estado sedimentar. É uma transformação daquilo que se era no passado, num nível de complexidade e de organização totalmente diferentes. Exigindo (como mostra a história natural do sistema nervoso central e a biologia molecular da cognição)
um «programa de perpetração e coordenação» cada vez mais complexo, capaz de gerir esse aumento de integração (chame-se-lhe: “software”, “algoritmo e equação neural-sináptica”, “mente/cérebro”, ou o que se quiser).
Assim sendo, é legítimo interrogar se o trabalho patrimonial sobre os objetos e materiais que constituem a “época Romana” (ou outra qualquer) continuará a ser
corretamente feito se (apenas) desenterrarmos tudo o que existe sobre ela. Em vez de transformarmos essa materialidade em conhecimento (informação), possível de ser codificado pelas gerações que nos sucederão. Isto é, passando-a para uma escala tal, que consegue
ser guardada numa sequência bioquímica no ADN dos que sobreviverem.
A geração atual --- e ainda mais as que a sucederão --- talvez já não tolerem viver rodeadas de ruínas e artefactos “Romanos”. Já nem será turístico, emblemático,
folclorístico ou diferenciador. Já não haverá sequer uma relação estética e cultural... agradável. Disso, em termos patrimoniais, talvez apenas queiram a lógica e a equação do que isso contribuiu
para se ser Humano. Ou seja, tal como desde o início da Vida, todo e qualquer património só será preservado se fôr codificável no sistema de memória e conhecimento que sobreviverá na viagem da Continuidade. Nessa viagem não cabem as coisas (em termos
de tamanho, peso e dimensão) tais como eram na sua materialidade quando foram originadas/criadas.
Ou seja, o que necessita de mudar não será o modo como devemos conceber e executar a atual Gestão do Património?
REGIMES E ESCALAS DE TEMPO/ESPAÇO:
Existe, em termos matemáticos, para um tempo/espaço quantificado (R), e para um objeto/facto particular (N), uma qualquer
diferença (X) entre [O1, O2, O3], ou [U1, U2, U3], ou [V1, V2, V3]?
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Objeto/Facto
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Uso
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Valor/
Significado
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Passado
Antes
Anterioridade
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O1
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U1
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V1
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Presente
Agora
Contemporaneidade/Coetaneidade
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O2
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U2
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V2
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Futuro
Depois
Posterioridade
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O3
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U3
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V3
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OBJETOS/FACTOS
que são PATRIMÓNIO
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USO
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VALOR
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PATRIMÓNIO: objetos/factos concretos tal como existiam no
Passado.
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USO dado no
Passado.
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VALOR que tinham no
Passado.
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PATRIMÓNIO: objetos/factos concretos que existem no
Presente.
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USO dado no
Presente.
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VALOR que têm no
Presente.
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PATRIMÓNIO: objetos/factos concretos que se consideram para o
Projeto que se propõe para o Futuro.
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USO que se quer dar no
Futuro com o Projeto que se propõe.
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VALOR que se deseja que venham a ter no
Futuro com o Projeto que se propõe.
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“[....] É esse erro que H-P.Jeudi (2001) comete ao querer explicar o valor patrimonial das fábricas desativadas (desmercantilizadas) pelo regime
de tempo da época em que estavam ativas, confundindo «objecto», «uso» e «valor patrimonial». Aliás um erro muito frequente nas análises sobre o Património, os Museus, e as Expografias. O valor patrimonial não está alojado na materialidade do objecto (as fábricas,
neste caso, de Jeudi), e, portanto, na relação com a perda de valor comercial como Jeudi defende; nem é por Basin & Selim alargarem a escala da análise à globalização capitalista, que evitam o mesmo erro de Jeudi.
A utilização do método comparativo permite evitar a subjetividade relativista característica das Humanidades, e aproximar-nos da validação mais
científica das Ciências Sociais. Permitindo constatar que o Património não são os objetos/factos, em si mesmos, sem a relação que estabelecem com a Realidade e com as Pessoas que os escolhem para ser «património». De certa maneira até poderíamos afirmar que
uma parte da qualidade patrimonial não está sedeada neles, mas sim na relação que estabelecem com a cognição das Pessoas. O ‘valor patrimonial’ depende do ‘uso’, o qual por sua vez não depende totalmente da materialidade ou do estado do ‘objecto’.” (Pedro
Manuel-Cardoso, 15junho2014, “O Tempo e o Espaço do Património em Museologia”,
Lista Museum mensagem n.º 11859)
Pedro Manuel-Cardoso
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