O trabalho profissional e o estudo do património conduziram à realização, em 2010 e 2011, dos trabalhos académicos de doutoramento (“O Património perante o Desenvolvimento”, 2010, ULHT) e de
pós-doutoramento (“A Cultura perante o Património”, 2011, FLUL, Universidade de Lisboa). No primeiro, foi possível descobrir uma “estrutura da Relevância” (ou do valor patrimonial) codificada na memória. O segundo, terminou com a sugestão de
que a cognição teria sido desenvolvida (pelo menos em parte) pelo exercício da
procura da Relevância.
Isto é, a cognição teria sido aperfeiçoada pelo efeito da procura de «o que preferir», «o que escolher», «o que hierarquizar», de «aquilo que se classifica como tendo mais valor», mesmo sabendo que
se desconhecia a verdade absoluta, a certeza definitiva ou a equação do tudo sobre a Natureza, o Mundo e a Existência. A necessidade dessa
procura da Relevância teria sido provocada, exactamente, por causa do efeito cognitivo auto-consciente dessa percepção dessa incompletude sobre o comportamento. O que influenciou a desprogramação genética e a sua gradual substituição por codificações
de autoria humana (no sentido que Ernst Mayr em “What evolution Is”, 2001, Basic Books, New York). Neste caso, concretamente, o tal aparecimento de uma “estrutura da Relevância” codificada na mnése, pressionada pela necessidade de escolher «qual o melhor
caminho a seguir na Continuidade» perante essa percepção de desconhecimento e incompletude inerente à condição humana. Uma consciência e uma auto-referência que, talvez, definam antropologicamente, melhor de que tudo, a característica distintiva mais potente
do ser dito “humano”; e interfiram de modo mais forte nas propriedades de “auto-catálise” e “auto-organização” inerentes à actual “definição bioquímica de Vida” (Sadownik, J., Mattia, E., Nowak, P., Sijbren, O., et al.,
Nature Chimestry 8, 264-269, 4jan2016,).
Agora, neste trabalho, que intitulámos “Património, Cognição e Evolução Humana” (e que iniciámos em 2012, no programa de doutoramento em antropologia na Universidade Nova de Lisboa –
FCSH), esse ponto-de-chegada foi transformado em ponto-de-partida. Ou seja, na hipótese --- a confirmar ou informar por este trabalho --- de que
o exercício de procura da Relevância (expressa na escolha e classificação de certos objectos e factos como sendo «património»)
provocou um aperfeiçoamento e transformação das capacidades cognitivas humanas. Concretamente, de que esse «exercício de procura da relevância» somado ao facto de o seu efeito ter provocado uma codificação na memória (à qual chamámos “estrutura da
Relevância” ou “estrutura do valor patrimonial”) ter gradualmente dotado a cognição de instrumentos heurísticos de «escolha
a priori da relevância» cada vez mais complexos e potentes (por exemplo, abdução, indução, dedução, anterioridade, posterioridade, deteção da diferença e da semelhança, analogia, homologia, isolamento das singularidades). A história da manipulação e
de gestão dos objetos e factos, a sua hierarquização em sucessivas escalas de valor, e a sua classificação como sendo “património”, fornecem a demonstração empírica que confirma a hipótese inicial deste trabalho.
A confirmar-se esta hipótese, demonstraria que houve uma evolução interna da cognição (quiçá, expressa em níveis de complexidade) com consequências no comportamento e no processo Adaptativo humano.
E permitiria estabelecer um nexo de continuidade em relação à estratégia eucariote de evolução filogenética e, inclusive, ao aparecimento do ADN.
De certo modo, este trabalho responde ao desafio lançado em 2010 pela Fundação Wener-Green, de se reflectir sobre a hipótese de Wynn & Coolidge (“it was an enhancement of working-memory capacity
that powered the final evolution of modern mind.” (“Working Memory: Beyond Language and Symbolism”,
Current Anthropology, vol. 51, Sup. 1, June 2010, p.S5). A tese, de que a evolução humana resulta não apenas do processo de relação exterior de Adaptação ao ambiente/contexto (expressa
na evidência anatómica-fisiológica-biomecânica), mas também, e sobretudo, de um processo interior de estímulo e aperfeiçoamento da cognição (em parte, independente do processo Adaptativo exterior).
Ou seja, um duplo processo de evolução que, apesar de interligado, não deixaria de ser independente. O que nos levou, em 3 de dezembro de 2016, na conferência proferida na Fundação Eng. António de
Almeida, a convite da Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia (SPAE), a qual designei por “O corpo em mutação”, a propor que se visse o resultado da evolução humana (nos objetos, na paisagem, no tamanho do cérebro, e na sociedade) não apenas
pelo processo difusionista de contactos e trocas, mas também pelo processo interno da cognição, expresso em níveis de complexidade, o que pressupõe o aparecimento da mesma complexidade (ou maior) em pontos geográficos distantes e descontínuos não sujeitos
obrigatoriamente a uma troca ou contacto, nem possuindo apenas um ponto-de-origem único e situado apenas num lugar.
E ainda, mais dois
resultados não previstos.
Independentemente da demonstração da hipótese inicial, este trabalho provocou
dois resultados não previstos. Por um lado, a formulação de um novo «modelo de compreensão do comportamento humano», possível de objetivar em termos científicos. Por
outro, a formulação de um novo «modelo de compreensão daquilo que se designa por Objecto (Realidade)».
Esse «modelo de compreensão do comportamento humano»
baseia-se na interdependência entre cinco realidades diferentes:
«Corpo (suporte e infraestrutura herdada e
a priori) – Cognição (atividade não-visível provocada pela gradual complexidade do cérebro) –
Comportamento (atividades visíveis, acções e práticas físicas exteriorizadas) –
Regulação social (institucionalização do efeito coletivo e colaborativo dos comportamentos individuais) –
Escolha da Relevância-Valor (escolha e classificação daquilo que é património e deve permanecer em memória)». Estas cinco realidades são consideradas variáveis independentes, descontínuas, e de nível lógico e complexidade diferente. Ou seja, não estabelecem
uma relação de causa-efeito direta e sucessiva entre si (umas não são a causa e a origem das outras), apesar de estarem ligadas. Logo, impede que o comportamento humano seja explicado e classificado apenas através de formas, tipos, técnicas e modalidades da
atividade física. Acresce que, este «modelo» permite descrever empiricamente a ligação entre a realidade física, biológica, social e cultural às quais cada uma dessas cinco variáveis pertencem. Permitindo, não apenas, descrever com objetividade esse
processo de relação e interdependência; como também, testar e aferir empiricamente esta definição no confronto com a realidade concreta e com os dados históricos. Ou seja, permitir uma demonstração simultaneamente dedutiva e indutiva.
Quanto ao «modelo de compreensão daquilo que se designa por Objecto (Realidade)», ele resultou da necessidade de descrever
o ciclo de vida de um Objeto na cognição. Nesse ciclo pudemos encontrar sete fases, a que correspondem «sete objetos diferentes», resultado das sete metamorfoses a que está sujeito qualquer Objeto (objeto-natureza, objeto-imaginado, objeto-construído,
objeto-representado, objeto-comunicado, objeto-relevante, objeto-memória). Ou seja, desde: 1.
OBJETO (ORIGINAL) NATURAL (no caso de o Objeto não ser uma criação humana: refere-se à matéria/química/energia utilizada na formação-criação-construção do Objeto independentemente da acção humana); até 2.
OBJETO (ORIGINAL) CONCEPTUAL (no caso de o Objeto ser uma criação humana: refere-se ao Objeto que existe na ideia, intenção, imaginação, cognição, perpetração humana. A representação-codificação do Objeto na percepção. O que o cérebro e o sistema
perceptivo captam e formalizam); até 3. OBJETO CONSTRUÍDO (o Objeto exteriorizado e formalizado numa construção-criação, servindo-se de um
Suporte); até 4. OBJETO DOCUMENTAL (o Objeto sujeito a uma operação de identificação, nomeação, classificação, documentação, arquivística ou musealização); até 5.
OBJETO-INFORMAÇÃO (o Objeto que é usado como Informação no processo de o comunicar); até 6.
OBJETO-PATRIMÓNIO (o Objeto que é escolhido para ser classificado como «Património»); até 7.
OBJETO-MEMÓRIA (TRANSMISSÍVEL) (o Objeto que fica na Memória --- nos neurónios, nos percursos sinápticos, no hipocampo, no ADN, ou num museu/arquivo/biblioteca/base-de-dados --- para ser acedível pela Cognição dos presentes e vindouros, em qualquer
dimensão do espaço-tempo, e em qualquer época ou contexto ambiental e geográfico). Deste modo, foi possível demonstrar que, para a cognição, neste processo heptadimensional de percepcionar a Realidade, não há uma descontinuidade entre um «objeto it»
e um «objeto bit». Um resultado que contribui para a discussão epistemológica entre «corpo e alma», «material e imaterial», «hardware e software», e demais oposições do mesmo tipo. Logo, também contribui para a relação entre Fenomenologia e Positivismo.
Em suma, a história da manipulação e da gestão dos objetos e factos, a sua hierarquização em sucessivas escalas de valor, e a sua classificação como sendo “património”, juntamente com a observação
da mudança que ocorreu no Património (nessa busca e gestão da Relevância) nos anos que se sucederam à dita “Segunda Guerra Mundial” (1939-45), forneceram a demonstração (dedutiva e indutiva) que confirmou a hipótese inicial deste trabalho.
Pedro Manuel-Cardoso
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