Cumprimento os Presentes, e,
Agradeço à SPAE, e ao Professor Victor Jorge, o Convite,
que muito me honra.
No Colóquio organizado em Paris pela
Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (EHESS) em 14 de novembro de 2011, e depois, na revista “Ciências Humanas” em janeiro de 2012, escreveram:
-
“Mais fragmentadas do que nunca as Ciências Sociais abandonaram o projeto de revelar a condição humana”1.
-
“Tentaremos que a Cultura e a Sociedade sejam um meio para compreender os comportamentos humanos, e não para compreender esses conceitos em si mesmos»2.
Ou seja, parece que depois de terem ficado demasiado tempo presos ao
Relativismo e ao Pós-Moderno (como ainda hoje se vê nos curriculae dos cursos de antropologia nas universidades públicas)
- construindo o saber antropológico em cima das noções vagas, como as de Indivíduo, Cultura e Sociedade
- este regresso à «especificidade do Ser-Humano» augura, no mínimo, uma
re-leitura da Antropologia.
No resumo/abstract desta Conferência escrevi: «O Ser-Humano está a afastar-se do Corpo». Alguns dados elucidam o sentido que quis atribuir a essa afirmação, e a sua pertinência.
> Em 2013, uma equipa da Universidade de Pittsburgh fabricou um coração com células estaminais retiradas da pele.
> Em
2014, na Universidade de Nova Iorque, foi possível criar Vida a partir de um cromossoma sintético desenhado em computador por uma equipa de sessenta biólogos moleculares.
> Em
2015 - através da manipulação de proteínas
- a equipa do prémio Nobel Erik Kandel3
conseguiu dar a memória da juventude a um rato idoso que a tinha perdido.
> Em 2015, no Instituto de Medicina Regenerativa Wake Forest nos EUA, uma bio-impressora 3D conseguiu imprimir estruturas ósseas
e musculares que se converteram em tecido vivo funcional com vasos sanguíneos.
> Em 2016, na Universidade de Sidney “começaram a experimentar
medicamentos que substituem os efeitos fisiológicos do exercício físico no corpo humano”.
Ou seja… da pele fizemos um coração. Com uma bio-impressora fizemos tecido vivo. De proteínas refizemos a memória. Com a bioquímica
substituímos os efeitos da atividade física feita com as pernas e os braços.
São centenas de resultados e descobertas como estas que hoje se sucedem exponencialmente10. Que nos dão consciência de um
Corpo fabricado que, em breve, substituirá aquele a que estávamos habituados.
Afinal Descartes45 tinha razão, não é na motricidade que está o
autor.
-
Este facto provoca um problema científico e lógico relativo ao Corpo Humano, que é o motivo desta Conferência.
Vamos substituindo as partes do Corpo por outras, porém, o agir propriamente humano e a consciência-de-nós não se perdem. Quando nos dói o corpo, afinal, dói-nos uma qualquer parte, a que um médico
chamaria o local da sua especialidade, cuja substituição não afeta a «coisalidade do Ser-Humano».
-
A noção de «corpo» é afinal subjetiva, e não passa de uma
teoria de conjunto ou de uma teoria do sistema. E esse facto questiona o
lugar e o objeto da Antropologia.
Presumimos que o Ser-Humano morre quando o corpo deixa de funcionar. Esse é o critério da morte legal, aceite pela Justiça, pela jurisprudência e pelos tribunais... Era o mesmo que olhar para um campo
seco no verão, e presumi-lo morto na próxima primavera.
Alguns factos merecem reflexão…
Consideremos os resultados da investigação à Vida, nos últimos cinco anos, publicados nas revistas científicas mais prestigiadas.
Verificamos que em 2013 a
Definição de Vida foi apresentada como: “…um sistema químico autónomo capaz de seguir uma evolução darwiniana”11.
E em 2016 foi acrescentado o seguinte: “a criação de seres vivos ocorreu a partir de matéria inerte através de processos de auto-catálise21 e de processos de auto-organização22,
e o «aparecimento de novas espécies de moléculas por via química» segue o mesmo padrão do que a evolução dos «organismos que se reproduzem sexualmente, por meiose»”12.
Por outro lado, a Biomecânica, define a atividade física do ser-humano
como “qualquer movimento corporal produzido pelos músculos esqueléticos que resulte num gasto energético relativamente à taxa metabólica de repouso”13.
Ora, mesmo optando por uma
Epistemologia Realista14 – e não por uma Epistemologia das Transcendências – é evidente que o Ser Humano não pode ser reduzido apenas ao
atual conceito de Corpo; e o Agir Humano não se pode definir assim em termos antropológicos. Há uma especificidade que escapa.
Porém, é esta, hoje, a definição de Vida para a Ciência.
E essa definição obriga a optar por uma de duas hipóteses:
i) Ou. o Ser-Humano é uma associação pluricelular e molecular de milhões de seres vivos que convivem em simbiose e reciprocidade
mútua dentro do Corpo Humano, não sendo nenhum deles;
ii) Ou, em alternativa, é um deles, e ainda não sabemos
qual é, nem a que escala está.
Ou é um Todo,
e, portanto, está em todas as partes não estando em nenhuma totalmente, como disse Giordano Bruno em 1584 (e nesse caso seria uma espécie de
fantasma imaterial);
Ou é uma Parte, e, nesse caso, é um
corpo concreto.
Em qualquer uma das opções continuavam a ser válidas as observações empíricas de que: por um lado, não é afetado pela re-fabricação e pelas substituições das partes; e por outro lado, que detetamos
o seu funcionamento como uma espécie de software dentro de um hardware, ou uma
reação dentro de uma infraestrutura ou de um conjunto.
Ou é um fantasma imaterial, ou é um
corpo concreto. Mas não é, de certeza, o «corpo Humano» tal como o definimos atualmente.
Mas seja como for,
nalgum lugar tem de estar o objeto da antropologia. Porque senão, é a Antropologia que não está em lado nenhum.
O que nos conduz à pergunta: «De que modo o ser-humano e o seu agir (comportamento) podem ser investigados como uma coisa,
como um corpo? Onde está o ser-humano? Onde está, efetivamente, o seu corpo?
…
No início de qualquer curso de Antropologia ensina-se
como o Corpo morre. Diz-se, que é um processo que passa por quatro fases. Que, em 64 dias, em média (dependendo da temperatura, da humidade, e da pressão), ficam apenas os ossos sujeitos à diagénese, num processo de decomposição do colagénio (proteína)
e dos minerais que pode demorar anos ou décadas, e até pode fossilizar16.
As perguntas dos colegas
- nessa iniciação antropológica de jovens estudantes
- ficam-nos para sempre na memória. Perguntamos uns aos outros: «mas o Ser-Humano morre logo; ou também
agoniza durante esses 64 dias, até ao corpo desaparecer?»
Porém, depois disso (nesses tempos antes-de-Bolonha, em que tínhamos 4 anos obrigatórios de disciplinas de Etnografia em horário
completo) desfilavam centenas de relatos dos comportamentos humanos em sociedades e culturas, as mais diversas, de Oriente a Ocidente, e de Norte a Sul. Eram necessários 4 anos de leituras comparadas, sobre os modos diversos do ser-humano se expressar social
e culturalmente.
E para nossa estupefação, nesses dados empíricos da Etnografia, o Ser-Humano não era esse tal Corpo feito de proteína e minerais,
que desaparecia em 64 dias. Mas, outrossim, um espírito viajante e mutante com a capacidade de se metamorfosear.
Concretamente, tomando à letra os
documentos etnográficos: -
i) Um Ser-Humano imbricado nos «totens dos Povos ditos primitivos»; ii) Ou, imbricado na «panóplia de objetos e animais que eram adorados nos sistemas mágico-religiosos das «sociedades sem escrita»;
iii) Ou, concebido como o “escaravelho do Egipto Antigo”, em que: “se acreditava na vida eterna para a qual se preparavam nesta vida”17;
iv) Mas, se fossemos ao Oriente mais longínquo, também verificamos que se acreditava, pelo menos desde o Rig Veda há mais de 3700 anos (1700 – 1100 a.C.), que “o «eu» verdadeiro de cada pessoa (Ȃtman)
é eterno”, e que toda a materialidade (realidade) não passa de avatares, que se sucedem num ciclo contínuo de
nascimento, morte, renascimento, onde opera a trindade: Brāman (criação), Vishnu (construção), Shiva (destruição);
v) Para os crentes no Hinduismo ou no Budismo, um Ser-Humano que re-encarna em toda e qualquer materialidade;
vi) Para os crentes no catolicismo, um Ser que pode ressuscitar e re-materializar noutro lugar (epístola de S.Paulo aos Coríntios); vii) Também, temos relatos etnográficos de um Ser-Humano pleno de misticismo, que até «palestrava para as pedras
e para os peixes» viii) Na religiosidade anglo-saxónica, o Doppelganger (o Duplo) está omnipresente, tendo sido eleito por Helmuth Plessner18 como uma das estruturas básicas da especificidade humana»;
ix) Nos Tempos Modernos, do séc. XIX, assistimos à proliferação das «heteronimidades» da Pessoa humana, algumas até têm estátuas nas nossas ruas;
x) E, hoje, surgem os novos inquilinos do Real, que transformaram o corpo humano em
segundas-vidas na quântica da Internet/WWW»; xi) E, assim, sucessivamente em tantos exemplos sem fim.
De um lado, um corpo enquanto coisa e objeto pertencente ao mundo da física. Do outro, um
espírito mutante pertencente ao mundo do simbólico e das significações, que reincarna, ressuscita, e se transmuta enquanto imaterialidade sem massa nem física.
Esta contradição era, em si mesma, o processo de iniciação ao conhecimento antropológico. E, hoje, ainda continua a ser.
Razão pela qual, talvez seja útil, regressar às origens, para se re-ler o programa de conhecimento da Antropologia. Agora, talvez, mais despojada do
antropocentrismo Renascentista, do evolucionismo Moderno, e do relativismo Pós-Moderno.
ONDE ESTÁ O SER-HUMANO, AFINAL?
“O meu lugar é onde estiver o meu pensamento e a minha capacidade de duvidar”45. Ter-se-á Descartes enganado, acerca do lugar do verdadeiro
Corpo do Ser-Humano?
Heidegger, em 25 de maio de 192419, ainda foi mais longe, e perguntou: “Onde está o Dasein?
Onde está o corpo do ser do «ser que pensa e age»?
À luz dos atuais dados da Ciência o
corpo humano, em termos lógicos e empíricos, não pode ser o corpo do ser-humano. Parece que a Antropologia andou tempo demais a procurar o seu
objeto no sítio errado. Não acreditou na sua Etnografia.
O problema já não é, entre a Metafísica e a Epistemologia43:
> O problema, hoje,
já não é: se a
Alma vai para o céu / o Corpo vai para a terra / e a Pessoa não sabe para qual desses dois sítios há-de ir.
>
A questão já não é entre
Monismo e Dualismo: se se é uma Máquina20, ou uma
Existência19. Nem entre: «o que é» de Descartes (1596-1650), Hobbes (1588-1679) e dos outros
Materialistas; e, o «quem é» de Espinosa (1632-1677), Leibniz (1646-1716) e dos partidários da
Fenomenologia.
>
A questão já não é,
o impasse entre Natureza e Cultura, criado pelo quarteto: Dan Sperber – Philippe Descola –Tim Ingold – Bruno Latour41.
A questão, agora, é, saber se o Ser-Humano efetivamente tem um
Corpo ou não.
> “Mais de metade do corpo humano não é humano. As células consideradas humanas perfazem apenas 43% da contagem total, o resto
são bactérias do microbioma” (Ruth Ley, Max Planck Institute).
> “Geneticamente somos mais micróbios do que humanos” (Rob Knight, Universidade da Califórnia/San Diego/EUA).
Permitam uma imagem para elucidar o raciocínio:
- Imagine-se um observador exterior à sala onde estamos. Esse observador ouvia-nos, e dizia: “estão lá dentro”.
E tomava o nosso corpo pela infraestrutura desta sala; porque era apenas isso que a sua percepção lhe indicava. Porém, como é evidente para nós, que estamos cá dentro, o nosso corpo não são as paredes desta sala. Seria o mesmo que tomar o piloto
pela nave.
O que o nosso limite preceptivo e cognitivo deixa de ver, ou deixa de poder observar empiricamente
numa determinada época, não pode ser tomado pelo resultado final - excepto se decidirmos que empiricamente
já chegámos ao fim da escala das coisas. Quando deixamos de ver funcionar um corpo (ou a parte que tomamos como sendo a sua totalidade), isso não explica nem demonstra cientificamente a impossibilidade de um outro corpo poder accionar aquele (ou aquela parte)
que só somos capazes de ver num determinado momento/época. Aliás, o que a história da Ciência nos ensina é, uma sucessão de descobertas de corpos dentro de corpos, tanto na escala do infinitamente pequeno como na do infinitamente grande
- desde o sistema linfático até às células, do ADN até aos átomos, e destes até aos quarks e neutrinos.
Um processo20 que tem mais de 13600 milhões de anos, e que não cessa de prosseguir essa lógica de «integração – desintegração – reintegração». Essa história, é a história de julgarmos que «o Tudo considerado numa época», afinal, estava dentro daquilo
que na mesma época considerávamos o Nada - desde o éter intergaláctico, à inexistência de Vida nas profundezas
do mar sem acesso à luz, ou à presunção da inoperância dos 98% dos genes não-codificadores dentro da molécula de
ADN humano44. Portanto, não estou a dizer nada que não possa ser, mesmo que não seja.
Em termos Evolutivos, a relação de um com o outro, talvez seja: primeiro, idêntica à de uma coisa que germina de uma semente (ou se emancipa de um ovo); mas depois, idêntica a uma Decisão que manipula
uma máquina.
Ora, se assim for: de que Física é essa, que entra nas coisas e nos outros corpos? Onde está
o Corpo do Ser-Humano propriamente antropológico? De que habitáculo necessitará, e de que paisagem humana será feita os seus próximos Ambientes?
Esta reflexão podia prolongar-se em termos lógicos37 por muito mais tempo,
mas aqui-e-agora, não há esse tempo. Assim, para abreviar indicaremos apenas as condições que impusemos à Investigação, e se houver tempo no Debate alguns resultados alcançados até ao momento.
A nível Metodológico definimos seis exigências:
1ª Exigência… Partir da hipótese de que o
Corpo do Ser-Humano, em termos físicos e químicos, é diferente do Corpo Humano.
2ª Exigência… Procurar descrever o
Agir Humano (comportamento) e a Vida Especificamente Humana como
uma reação com a propriedade química de Decisão, que evoluiu em complexidade até aos dias de hoje, cuja principal habilidade (output) é Codificar tudo aquilo que recebe (input).
3ª Exigência… Procurar o
Corpo do Ser-Humano como sendo «a Física dessa reação química com essa propriedade de Decisão».
4ª Exigência… Investigar o momento em que ocorre o início da formação de
um Corpo Especificamente Humano a partir do aparecimento da Estratégia de Vida Eucariote20 há 1600 milhões de anos.
5ª Exigência… Ter por premissa, que a escala e a dimensão desse Corpo será provavelmente
menor ou igual à das escalas onde ele conseguir entrar. Portanto, estar preparado para encontrar esse
Corpo do Ser-Humano dentro de outros corpos/objetos com os quais partilha a existência molecular, proteica, e mineral.
6ª Exigência… Exigir que a
descrição dos resultados da Investigação possa ser feita numa base matemática para permitir a convergência entre a
linguagem bioquímica, a linguagem informática, e as linguagens simbólicas e culturais.
PARA TERMINAR PERMITAM QUE ACRESCENTE O SEGUINTE,
De facto, estes avanços e mutações no saber antropológico conduzem-nos a um novo tempo e a um novo paradigma do Conhecimento. E
desafiam a pergunta kantiana37 fundadora da Antropologia “o que é o Ser-Humano?”. E, portanto, o entendimento antropológico sobre «quem somos», «onde estamos», e «para onde havemos de ir».
Desafiam o próprio
modo de formular a Pergunta38. Em que a palavra Ser-Humano deixa de ser um substantivo, e passa a ser um adjectivo de algo que desconhecemos... mais do que julgávamos.
Porém, perante esta realidade atual, uma coisa parece certa: é impossível negar a pujança da Antropologia hoje.
Muito Obrigado.
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