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Re: [Archport] Discussão sobre uma Associação Pública Profissional dos Arqueólogos

To :   "J M" <jmarques_64@yahoo.com>
Subject :   Re: [Archport] Discussão sobre uma Associação Pública Profissional dos Arqueólogos
From :   "Alexandre Monteiro" <no.arame@gmail.com>
Date :   Wed, 30 Jul 2008 11:58:31 +0100

Desculpar-me-ão, mas a minha primeira mensagem seguiu truncada.. dizia
eu, deixo-vos um artigo do constitucionalista Vital Moreira, referente
à criação da Ordem dos Professores mas que se pode aplicar, no geral,
à eventual constituição de uma Ordem dos Arqueólogos:

"As ordens na ordem

Vital Moreira

Dois acontecimentos recentes vieram chamar a atenção mais uma vez para
as ordens profissionais. O primeiro foi a rejeição na Assembleia da
República de uma petição que pretendia a criação de uma ordem dos
professores; o segundo foi a condenação, pela Autoridade da
Concorrência, de duas ordens profissionais (médicos dentistas e
médicos veterinários) por motivo de fixação de honorários
profissionais. Vale a pena voltar ao assunto.

A rejeição da pretendida ordem dos professores parece significar o fim
da deriva neocorporativista que desde o 25 de Abril fez instituir
várias ordens profissionais (e outras corporações profissionais
públicas afins), levando à criação de um clima favorável à
revindicação de novas corporações profissionais públicas por parte de
inúmeras profissões. De facto, a partir da criação da ordem dos
enfermeiros e da ordem dos economistas, tudo parecia possível nesta
área. É de esperar, portanto, que doravante não baste a vontade das
profissãos interessadas para criar mais umas tantas ordens e que
passará a haver um critério material para a identificação das
profissões elegíveis para constituir novas ordens. Por sua vez, as
decisões da Autoridade da Concorrência, aliás segundo uma linha
iniciada pelo antigo Conselho da Concorrência, traduzem a plena
aplicação das regras da concorrência aos serviços profissionais
organizados em ordens, considerando estas como "associações de
empresas" (no sentido amplo que a noção tem no direito comunitário),
pelo que a fixação de honorários constitui uma evidente restrição à
concorrência. Mas a aplicação directa do direito da concorrência às
ordens profissionais, incluindo a sua sujeição à jurisdição da
Autoridade da Concorrência, levanta alguns problemas, visto que as
ordens são entidades de direito público sujeitas ao direito
administrativo e aos mecanismos próprios de "judicial review" da
ilegalidade dos seus actos.

As ordens profissionais apresentam uma incontornável duplicidade: por
um lado, são associações de agentes económicos, de prestadores de
serviços, cujos interesses colectivos visam defender; por outro lado,
são organismos oficiais (associações ou corporações públicas),
encarregadas da regulação da profissão (acesso à profissão, disciplina
profissional, etc.). A ideia básica que subjaz às ordens profissionais
é a de que existe convergência, ao menos parcial, entre o interesse
público na regulação da profissão e o interesse colectivo da própria
profissão nessa mesma regulação. Concretamente, trata-se de pôr ao
serviço da realização do interesse público o interesse da própria
profissão em garantir a qualidade dos serviços e em punir as
infracções à deontologia profissional, em defesa do bom nome e do
prestígio da profissão. Mas é evidente que as ordens podem potenciar
as típicas tentações das profissões organizadas em todo o lado, que
são o malthusianismo profissional (ou seja, a limitação artificial do
acesso à profissão), a ampliação do âmbito do exclusivo profissional
na definição das funções profissionais e a restrição da concorrência
(fixação de honorários, proibição da publicidade, etc.) para majorar
os proventos dos seus membros. Por isso, as ordens profissionais
tendem a funcionar, na melhor das hipóteses, como um "grupo de
interesse oficial" e na pior como uma cartel público.

Nos últimos anos, têm-se acentuado entre nós os esforços das ordens
para limitar o acesso à profissão. Sem mencionar as propostas extremas
de contingentação anual, até agora sem seguimento, são três os
mecanismos utilizados:

- primeiro, elevar os requisitos académicos para o acesso à profissão
(banalização da exigência de licenciatura);

- segundo, controlar os requisitos académicos à entrada na profissão,
através de um exame de ingresso ou da "credenciação" ou "acreditação"
dos cursos pela ordem;

- terceiro, alongar os estágios profissionais e tornar cada mais
selectivos os exames de estágio, efectuados pela própria ordem.

No caso da Medicina, a limitação do acesso à profissão continua a ser
efectuada a montante, pelo numerus clausus dos cursos de Medicina,
acompanhado pelo não reconhecimento de cursos de Medicina fora as
universidades públicas (que uma zelosa comissão oficial confirmou
recentemente). No caso do controlo dos conhecimentos académicos dos
candidatos, a intervenção das ordens profissionais é tanto mais
questionável quanto é certo que se trata de questionar títulos
públicos (mesmo quando conferidos por universidades privadas), que
atestam a aprovação nos cursos que legalmente dão acesso à profissão.

As ordens deveriam limitar-se a controlar os conhecimentos que elas
mesmas podem ministrar, ou seja, as legis artis da profissão e os
deveres deontológicos próprios de cada profissão. Ora, o que se
verifica é que há ordens que prescindem de qualquer estágio ou de
qualquer ensino no acesso à profissão e que em contrapartida são as
mais diligentes no controlo dos conhecimentos académicos dos
candidatos, que elas não deveriam poder pôr em causa. É evidente que
nada disso seria possível sem a conivência do legislador.

Embora, em alguns casos, as ordens tenham tomado iniciativas sem base
legal (o que bastava para as tornar ilícitas), a verdade é que em
geral vieram depois a obter a sua consagração legislativa, através de
oportunas revisões dos estatutos ou de legislação avulsa. Esta
circunstância serve para revelar a grande influência política das
ordens profissionais - ou melhor, das profissões que elas representam
- na promoção dos seus interesses. Esta captura do legislador pelas
profissões organizadas - sobretudo das que estão organizadas em
ordens, por causa da inscrição e quotização obrigatória e da
representação de toda a profissão - é facilitada pela falta de uma
lei-quadro das ordens profissionais, que regule a sua criação, a sua
organização de acordo com os cânones democráticos (o que nem sempre
sucede) e as suas atribuições e poderes e que balize a sua intervenção
no acesso às profissões e na regulação do seu exercício.

Sou dos que entendem que faz sentido a auto-regulação e a
auto-administração profissional, sobretudo no caso da autodisciplina
profissional, dispensando o Estado de investir em tarefas que ele não
está em condições de desempenhar a contento e aproveitando o próprio
interesse das profissões em regularem-se a si mesmas. Mas, por um
lado, as ordens não são o único formato possível para a auto-regulação
profissional, longe disso, como mostra a solução anunciada pelo actual
Governo para a autodisciplina profissional dos jornalistas, que não
passa pela criação de uma ordem. E, por outro lado, a auto-regulação
corporativa, por meio de associações profissionais, não pode
converter-se num meio de privilegiar a defesa dos interesses de grupo
sobre o interesse público e de transformar as ordens em cartéis
legais.

No final da década passada, fracassou à partida - mercê da oposição
das ordens - uma tentativa de estabelecer um quadro legislativo
genérico para as ordens profissionais, capaz de pôr fim ao
singularismo legislativo avulso e de fixar alguns parâmetros gerais
essenciais sobre as mesmas. Julgo que vale a pena retomar essa
iniciativa, agora em melhores condições. Não se trata de nenhum modo
de instituir o controlo das ordens pelo Estado - pelo contrário,
entendo por exemplo que se lhes deve reconhecer uma ampla autonomia
estatutária no quadro da lei, de que elas não dispõem hoje -, mas sim
de clarificar, por via legislativa, o seu lugar e o seu papel na
regulação das profissões em prol do interesse público, sem restrições
constitucionalmente inadmissíveis seja à liberdade de profissão (quer
quanto ao seu acesso quer quanto ao seu exercício), seja às regras da
concorrência, que numa economia de mercado não podem deixar de fora os
serviços profissionais.

Professor universitário"


2008/7/30 Alexandre Monteiro <no.arame@gmail.com>:
> Eu já fui mais poartidário da criação de uma Ordem dos Arqueólogos do
> que sou hoje. Entre outros motivos, partilho dos receios levantados
> por um dos nossos constitucionalistas, Vital Moreira, de que deixo o
> artigo por ele escrito (referente à putativa criação de uma Ordem dos
> Professores,
>
> 2008/7/30 J M <jmarques_64@yahoo.com>:
>> Caros Archportianos,
>>
>>
>>
>> Como já é do conhecimento deste fórum,  no início do corrente ano foi
>> publicada a Lei 6/2008 referente ao regime jurídico das associações públicas
>> profissionais.
>>
>> O exercício profissional da actividade arqueológica depara-se com muitas
>> problemáticas, que são fruto dum papel voluntarista exercido pelo Estado e
>> da obrigatoriedade do cumprimento da legislação comunitária relativamente à
>> minimização de impactes ambientais.
>>
>> Presentemente não se pode dizer se o papel exercido pela arqueologia nos
>> últimos dez anos foi meramente conjuntural ou se se tornou uma irreversível
>> realidade estrutural. Discutem-se hoje problemas relativos ao cumprimento de
>> um código deontológico,  à formação e certificação/creditação profissional,
>>  às relações contratuais e laborais, a existência de uma tabela de
>> remuneratória, etc.
>>
>>
>>
>>
>>
>> Transcreve-se aqui parte do seu Artigo 2.º, "Definição e constituição":
>>
>> 1 — Para efeitos desta lei consideram-se associações
>>
>> públicas profissionais as entidades públicas de estrutura
>>
>> associativa representativas de profissões que devam,
>>
>> cumulativamente, ser sujeitas ao controlo do respectivo
>>
>> acesso e exercício, à elaboração de normas técnicas e
>>
>> deontológicas específicas e a um regime disciplinar autónomo.
>>
>> 2 — A constituição de associações públicas profissionais
>>
>> é excepcional e visa a satisfação de necessidades específicas,
>>
>> podendo apenas ter lugar nos casos previstos no
>>
>> número anterior, quando a regulação da profissão envolver
>>
>> um interesse público de especial relevo que o Estado não
>>
>> deva prosseguir por si próprio.
>>
>> 3 — A criação de novas associações públicas profissionais
>>
>> é sempre precedida de um estudo elaborado por
>>
>> entidade de reconhecida independência e mérito sobre a
>>
>> sua necessidade em termos de realização do interesse público
>>
>> e sobre o seu impacte sobre a regulação da profissão
>>
>> em causa.
>>
>> 4 — A cada profissão regulada apenas pode corresponder
>>
>> uma única associação pública profissional.
>>
>>
>>
>> A Lei 6/2008 surge assim como uma nova oportunidade para que agora se passe
>> da discussão da pertinência para a acção da criação de uma «ordem dos
>> arqueólogos».
>> Veja-se o que diz no seu Artigo 4.º, "Atribuições":
>>
>> 1 — São atribuições das associações públicas profissionais,
>>
>> nos termos da lei:
>>
>> a
>>
>> ) A defesa dos interesses gerais dos utentes;
>>
>> b
>>
>> ) A representação e a defesa dos interesses gerais da
>>
>> profissão;
>>
>> c
>>
>> ) A regulação do acesso e do exercício da profissão;
>>
>> d
>>
>> ) Conferir, em exclusivo, os títulos profissionais das
>>
>> profissões que representem;
>>
>> e
>>
>> ) Conferir, quando existam, títulos de especialização
>>
>> profissional;
>>
>> f
>>
>> ) A elaboração e a actualização do registo profissional;
>>
>> g
>>
>> ) O exercício do poder disciplinar sobre os seus membros;
>>
>> h
>>
>> ) A prestação de serviços aos seus membros, no respeitante
>>
>> ao exercício profissional, designadamente em relação
>>
>> à informação e à formação profissional;
>>
>> i
>>
>> ) A colaboração com as demais entidades da Administração
>>
>> Pública na prossecução de fins de interesse público
>>
>> relacionados com a profissão;
>>
>> j
>>
>> ) A participação na elaboração da legislação que diga
>>
>> respeito às respectivas profissões;
>>
>> l
>>
>> ) A participação nos processos oficiais de acreditação e
>>
>> na avaliação dos cursos que dão acesso à profissão;
>>
>> m
>>
>> ) Quaisquer outras que lhes sejam cometidas por lei.
>>
>> Sem esta associação pública profissional, sem este reconhecimento do seu
>> papel social, da sua especificidade e autonomia, esta actividade continuará
>> despojada dos instrumentos que lhe confeririam credibilidade e afirmação no
>> seu exercício.
>>
>> João Marques
>>
>> http://www.dgpj.mj.pt/sections/leis-da-justica/pdf-ult2/lei-6-2008-de-13-de4297/downloadFile/file/Lei_6.2008.pdf?nocache=1204280397.17
>>
>> _______________________________________________
>> Archport mailing list
>> Archport@ci.uc.pt
>> http://ml.ci.uc.pt/mailman/listinfo/archport
>>
>>
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