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Re: [Archport] Um texto sobre o património arqueológico subaquático

To :   "Alexandre Monteiro" <no.arame@gmail.com>
Subject :   Re: [Archport] Um texto sobre o património arqueológico subaquático
From :   "Joao Paulo Pereira" <Joaop@inag.pt>
Date :   Thu, 15 Jan 2009 09:59:51 -0000

As notícias, e pelos vistos factos, relativos ao alegado desleixo do IGESPAR em relação às suas tarefas de protecção do património subaquático faz-me perguntar se é o IGESPAR a fazer queixa dele próprio? 

-----Mensagem original-----
De: Alexandre Monteiro [mailto:no.arame@gmail.com] 
Enviada: quarta-feira, 14 de Janeiro de 2009 23:36
Para: Joao Paulo Pereira
Cc: filipe castro; Archport
Assunto: Re: [Archport] Um texto sobre o património arqueológico subaquático

Boa noite.

Eu, sinceramente, não queria ser arrastado para esta discussão - artigos para terminar, coisas por fazer, também um certo cansaço em fazer chover sobre o molhado e catequizar os conversos, etc. - mas depois decidi que, em coerência, teria que dizer algo.

Em primeiro lugar, uma declaração de interesses. Fui colaborador do Francisco Alves, fui co-responsável com ele em algumas escavações, sou, enfim, seu amigo pessoal e admirador. Tal amizade pessoal não me tapa os olhos, contudo, para os seus defeitos e idiossincracias - coisas que, ao contrário de que alguns poderão pensar, todos temos. As discussões de faca na liga que tivemos em momentos-chave de certas escavações são a prova provada disso mesmo.

Dito isto, cansa-me igualmente a fulanização de certos ataques insidiosos, feitos à boca pequena, pelos mentideros de congressos e salas de aula, contra a pessoa do director da DANS - uma coisa é a pessoa, outra é o cargo e uma coisa não é a outra e vice-versa.

Em primeiro lugar, se não houvesse Francisco Alves (FA), nem eu estaria aqui, nem o Filipe seria professor doutorado de arqueologia náutica a leccionar na Texas A&M, nem o Tiago seria mestre pela mesma universidade, nem haveria o l'Ocean, os navios do Arade, de Aveiro, dos Açores, do Cais do Sodré, nem certamente Portugal seria signatário da Convenção da Unesco para a Protecção do Património Subaquático e por aí fora.

O que teríamos seria, eventualmente, as empresas de caça ao tesouro a actuar nas águas portuguesas, a pilhar o que queriam e a estragar tudo o mais, o Museu de Marinha a comprar astrolábios a saqueadores, como fez há uns anos atrás e por aí fora igualmente. Mas, como a História não é o "poderia ter sido" mas sim o que foi, olhemos para a conjuntura de hoje.

Emulando o IGESPAR, que passou de cavalo para burro com a "fusão" do IPA, a DANS está, neste momento, anquilosada e estagnada - não há gente, não há administrativos, não há dinheiro (a escavação do Arade 23, cinco pessoas em vinte dias de mergulho, foi feita com um orçamento de 500 euros...), não há técnicos, não há contratos de trabalho, de manutenção de equipamentos, não há sequer (ou há, numa espécie de limbo) lugar físico para a DANS.

E, não havendo as coisas mencionadas no parágrafo supra, não há aquilo que a DANS deveria fazer, por imperativa vocação e atribuição legal - verificação das declarações de achados fortuitos, regulação e fiscalização de empreendimentos e obras em frente aquática, aprovação de projectos na sua área de intervenção.

Houve erros? Houve, claro.

Poderia ter sido melhor? Sem dúvida.

Mas, que eu me recordo, muitos dos que agora falam acintosamente - e eu ouço-os nos tais mentideros - ficaram mudos e quedos em 1993, quando Santana Lopes promulgou a lei da caça ao tesouro. Muitos desses ficaram de mãos cruzadas quando o Francisco Alves não foi reconduzido como Director do Museu Nacional de Arqueologia, exactamente por révanche de Santana Lopes em reacção a um artigo de opinião escrito por FA no Público. Pior: muitos e reputados arqueólogos da nossa praça desvalorizaram publica e regularmente os resultados obtidos pela Arqueologia Subaquática em Portugal. Se isso não é dar um tiro no pé da Arqueologia em geral, não sei o que será. Pior ainda: houve arqueólogos portugueses que passaram a trabalhar para empresas de caça ao tesouro.

Enfim, adiante.

A arqueologia subaquática em Portugal sofre de 3 problemas estruturais. O primeiro é o da formação. O segundo é o da fiscalização e regulação. O terceiro é o do desinteresse geral - nosso, dos político e dos cidadãos.

Não há formação teórico-prática em Portugal de qualidade. Ponto. Não há uma escola de mergulho científico. Os únicos cursos ad-hoc ministrados eram os da Nautical Archeological Society, via DANS. A única cadeira obrigatória ministrada em Portugal na área, que eu saiba, é a da Nova e é a única que tem gerado projectos no terreno, em que há escavações efectivas e publicação de resultados. Depois, há os projectos da DANS, do CeMAR da UAL, a carta de Lagos, os projectos do GEPS e pouco mais.

Haverá outras?

Não sei. Apesar de me manter informado e de ir lendo aquilo que se faz dentro da área em Portugal, nada mais tenho encontrado. Coimbra ou a Faculdade de Letras ou a UM têm projectos em arqueologia naval/marítima/náutica/subaquática? Sim, há? Onde? Quais? Que jazidas foram encontradas, que áreas foram prospectadas? Que resultados há e onde foram publicados?

Não há escola. Podemos perorar ex cathedra sobre as mais diversas temáticas da arqueologia sobre e sob as águas que vai dar tudo no
mesmo: não é lendo nos livros que se faz arqueologia, não é por se saber o Vitrúvio de trás para a frente e de frente para trás que se evita escavar arquitectura romana em Portugal - "para quê, se está tudo no Vitrúvio'", não é lendo os nossos tratados de arquitectura naval e os périplos da Antiguidade que progredimos tudo o que há para progredir. É por isso que aquilo que fazemos se chama arqueologia e não história.

Mas temos uma sorte imensa: é que o país, com as suas costas, os seus estuários, as suas águas interiores, está carregadinho de potencial arqueológico. Único. Isto não são as costas da Austrália ou da Califórnia, em que se estuda até à exaustão navios da Segunda Guerra Mundial, porque não há material mais antigo com que ocupar os arqueólogos locais.

Não, aqui em Portugal há coisas potencialmente maravilhosas capazes de colmatar lacunas no conhecimento científico e que não existem em mais lado algum. De onde pensam vocês que vieram os vasos gregos de Alcácer do Sal? Ou as ânforas béticas? Ou as campanienses? Não vieram pela A1, certamente.

E os navios ibéricos afundados nos Açores, 250 desde 1522, de acordo com as minhas contas e que tanto têm interessado as entidades espanholas. E navios árabes, visigóticos, normandos, cogas medievais enterradas na lagoa de Óbidos, caravelas portuguesas, das genuínas, em Salir do Porto, em Cós, em Viana, no Mira, em Tróia, na ria de Alvor... tanto por fazer, tanto projecto capaz de suscitar o especial interesse mediático do público (que traz por arrasto o interesse, a contragosto e contrafeito, dos decisores políticos - vejam o caso do navio da Namíbia, por exemplo, pensem lá que outro tipo de património arqueológico português daria um artigo de fundo na National Geographic internacional como aquele que está prestes a sair) tanto potencial e depois..... nada. É o zero. Além, claro, do FA, que açambarca tudo e não deixa ninguém fazer nada.

É que não há um único instituto ou centro académico em Portugal que tenha feito uma escavação: Prospecções, só conheço as que a UAL fez nos canhões de Portimão e da Nazaré. Diz o professor Mantas que estuda as rotas náuticas antigas. Eu contraponho-lhe que tenho comigo os dados relativos a peguilhos ao largo da costa portuguesa, do Espichel ao Guadiana, de onde saiu material anfórico e madeiras e que, inclusivé, já apresentei em congresso. Que se faz disso? Vai-se lá ver o que é, criam-se sinergias com a Marinha para aproveitar o ROV deles que vai a 6000 metros e para quem 250 metros são nada? Coloca-se uma proposta à FCT?

Não, nada disso. Cruza-se os braços e rosna-se de mansinho à caravana pobre e esfrangalhada que ainda teima em passar, de rodas a chiar por falta de unto nos eixos, o rocinante esfaimado, o condutor sozinho, os outros pioneiros com as costas cheias de setas que os índios emboscados dispararam à traição.

Contam-se pelos dedos de uma, duas mãos, no máximo, as pessoas que trabalham (bem) nesta área. Tal causa-me um certo espanto, tanto mais que só conheço uma empresa especializada em arqueologia subaquática a trabalhar em acompanhamentos de obra. O que se passará? Não há obras em frente marítima ou em águas interiores e em zonas antigamente imersas?

Pois eu digo que chega de teoria. Chega de cursos de papel e caneta (pudera, são os mais baratos) que, como bem diz o Professor Martín-Bueno, não fornecem qualquer mais valia prática a quem quer trabalhar na área. Dêem-me um curso com componente prática, de prospecção remota (SVL, PS e MP), de escavação e de interpretação náutica e naval das jazidas, com docentes que saibam mergulhar, velejar e construir uma embarcação e eu serei o primeiro a inscrever-me nele. De resto, só poderei contra-indicar.

Afinal, como podemos nós criar ciência se não temos dados de terreno?

Que navios passavam por aqui?

Quem os tripulava?

Quem os construía?

Como estavam eles adaptados à navegação no Atlântico?

Não se sabe. Desde Cádiz até Guernsey, toda a fachada ibero-atlântica, incluindo todo litoral português, é uma imensa mancha vazia - ninguém sabe, ninguém viu, ninguém quer saber, toda a gente se está nas tintas. E, se até os arqueólogos e as academias de arqueologia se estão nas tintas, porque raio haveriam de ter os políticos pendor diferente?

Sim, é muito fácil fulanizar a questão, é muito fácil dizer que há forças de bloqueio, é muito fácil virem a terreiro as vestais do costume, a gritar, a rasgar as vestes, a brandir artigos do código administrativo, a exigir não se sabe bem o quê. Mas... e que tal apresentarem projectos? Angariar patrocínios? Montar uma máquina logística? Formar gente? Organizar prospecções?

Se quiserem objectos de estudo eu dou-os de bom grado: um galeão espanhol em Tróia, o fundão "romano" no mesmo local, os canhões da Roca, sítios de naufrágio cabonde, igrejas submersas no Algrave - há centenas de sítios localizados e identificados, à espera apenas de quem agarre neles.

As pessoas, muitas vezes, demitem-se dos seus interesses, das suas apetências, dos seus direitos até. Atrás, ficam apenas os conformados e os vencidos da vida a secar a fertilidade do terreno que delimitaram à sua volta como se fossem eucaliptos. Eu, contudo, acredito que se lutarmos por aquilo que queremos ganhamos o direito de poder dizer:
"isto e isto está mal e NÓS, em parceria, em equipa, vamos mudar isto e isto para melhor".

Eu estou de consciência tranquila. E vocês?

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