Alminhas estão mais abandonadas e aguardam protecção e salvação por responsáveis pelo património
Portugal é o único país que, na sequência do Concílio de Trento, criou os monumentos que são marcas profundas da religiosidade popular
Hoje é Dia de Finados, dia de visitar as campas dos cemitérios dos entes queridos falecidos e os milhares de nichos, capelinhas e painéis de azulejos que se encontram ao abandono ao longo do país e que têm sido alvos fáceis do vandalismo mais gratuito. As suas imagens, representando almas de defuntos no Purgatório, suplicam a quem passa rezas e esmolas para chegarem ao Céu. Mas no estado de degradação a que muitas alminhas chegaram, bem podem agora suplicar também a quem olhe para elas próprias. Portugal é o único país do mundo que possui no seu património cultural, localizadas habitualmente à beira de caminhos rurais e em encruzilhadas, as alminhas, representações populares das almas do Purgatório que suplicam rezas e esmolas e que frequentemente surgem em microcapelinhas, padrões, nichos independentes ou incrustados em muros ou nos cantos de igrejas, painéis de azulejo ou noutras estruturas independentes. Mas uma grande parte deste património representativo da religiosidade popular portuguesa está a degradar-se crescentemente, rodeada por silvas, alvo de actos de vandalismo avulso e reflexo directo e generalizado da pressa da vida actual, do abandono das zonas rurais do país e da indiferença que predomina nas autarquias em relação aos pequenos monumentos saídos da imaginação e da devoção do povo. "As alminhas são uma criação genuinamente portuguesa e não há sinais de haver este tipo de representação das almas do Purgatório, pedindo para os vivos se lembrarem delas para poderem purificar e "subir" até ao Céu, em mais lado nenhum do mundo a não ser em Portugal", afirma António Matias Coelho, professor de História, investigador de manifestações da cultura religiosa e popular e organizador de dois encontros nacionais sobre Atitudes perante a morte, realizados há alguns anos na Chamusca. "No cristianismo primitivo só havia Céu e Inferno, a ideia do Purgatório só surgiu na Idade Média, quando a Igreja, na sequência do Concílio de Trento de 1563, o impõe como dogma, numa lógica de resposta católica à Reforma levada a cabo pelos protestantes. Passava assim a haver um estado intermédio para as almas das pessoas que faleciam. E em vez do dualismo do Céu, para os bons, e do Inferno, para os impuros, criou-se um estado intermédio, um local onde durante algum tempo as almas ficariam a purificar", observa o historiador, evidenciando, porém, a forma específica como em Portugal se interpretou as indicações de Trento.
Representações públicas "É na sequência do Concílio de Trento que são criadas as Confrarias das Almas, como forma de institucionalizar a crença no Purgatório e impor a convicção de que as almas dos mortos sairiam tanto mais cedo do Purgatório quanto mais orações e esmolas fossem feitas pelos vivos. Aliás, tudo dependia dos vivos, unicamente a eles competia sufragar as almas que esperavam pela purificação", observa António Coelho. Mas, reflexo eventual de uma forma religiosa, emocional e sentimental própria, começam a surgir em Portugal, sobretudo a norte do rio Mondego, fruto de uma cristianização mais prolongada e vivida, pequenas representações das alminhas em sítios públicos com alminhas de mãos erguidas suplicando aos vivos orações e esmolas para poderem completar a purificação e libertar-se das contingências do Purgatório.
Religiosidade popular "Há muitas alminhas em todo o país, mas sobretudo no Norte, e alguns municípios têm seguramente centenas de alminhas com alguma relevância dispersas pelo seu território. Nas regiões do Porto e de Aveiro, e em concelhos como Arouca, Sever do Vouga, Vouzela e São Pedro do Sul, em Trás-os-Montes e por toda a Beira Interior há alminhas dispersas pelos caminhos implorando aos vivos que se lembrem delas", afirma António Matias. O investigador lamenta, no entanto, a "morte lenta" a que estão devotadas estas manifestações tão identitárias da religiosidade popular própria dos portugueses. Refere a pressa dos tempos modernos. "As pessoas já não param para acender uma vela ou para fazer uma oração. Agora está tudo muito diferente se compararmos, por exemplo, com o século XIX, quando ainda se construíam muitas alminhas", esclarece António Matias, sublinhando que se recorda de, ainda há poucas décadas, ser comum, "a quem passasse junto às alminhas, parar, curvar-se e tirar o barrete [ou chapéu] em respeito, pôr flores, acender uma vela ou lamparina de azeite, fazer o sinal da cruz e rezar o Pai Nosso e Ave Maria, correspondente à sigla P.N.A.M., existente como relembratório junto a muitos nichos e capelinhas que apelam às rezas cristãs".
O papel das autarquias "Hoje estamos bastante descristianizados e já não se vêem as alminhas iluminadas, tremelicando de luz, que dantes se viam ao longe acesas à noite, muitas vezes em locais ermos e distantes no meio do nada. Mas era desejável que estes objectos feitos de cantaria trabalhada ou outros materiais não acabassem no meio de silvas, como já acontece bastante. Impõe-se que os municípios tenham mais atenção às suas alminhas e a este património tão genuinamente português", defende António Matias. Apesar de Portugal ser um estado laico, o professor da Chamusca sublinha que as autarquias têm a obrigação de inventariar e preservar as alminhas, que são sobretudo património cultural, e aponta para exemplos de acções de levantamento de alminhas e sua preservação levadas a cabo, por exemplo, pelas câmaras de Vouzela e Sever do Vouga, juntas de freguesia, associações dedicadas ao património e até mesmo por professores e alunos de escolas primárias.
Afogados no Douro, para fugir às tropas de Napoleão
Pequenas criações saídas das crenças do povo e na ideia do Purgatório, as alminhas pedem pelas almas dos defuntos em geral, mas algumas delas estão ligadas a casos pessoais, mortes trágicas ou colectivas que impressionaram as comunidades cristãs e laicas. O baixo- relevo das "Alminhas da Ponte", no Porto, próximo da Ponte de D. Luís, evoca a catástrofe da morte de cerca de quatro mil pessoas que, em Março de 1809, procuravam atravessar o Douro para fugir às tropas de Napoleão Bonaparte na II Invasão Francesa, e na confusão gerada acabaram por se afogar no rio. Centenas de alminhas marcam homicídios que chocaram as comunidades, ajustes de contas, amores mal resolvidos ou locais que ficaram cravados pelo sangue de um despiste de um automóvel ou de motas com cilindradas inversamente proporcionais à idade dos seus condutores. De resto, as alminhas acabam por se inspirar e ser um legado das civilizações clássicas de Roma e da Grécia, que nas suas deambulações já haviam erguido monumentos junto às estradas para devoção aos seus deuses. "O cristianismo inspirou-se nesta herança e cristianizou-a, erguendo cruzeiros e outros símbolos religiosos. As alminhas vêm nesta continuidade de ocupação dos espaços públicos, procurando apanhar as orações de quem passava para salvar mais almas", conclui António Matias. M.F.V.
Na hora da morte somos todos iguais, são alminhas democráticas
"Ó tu mortal que me vês/ Repara bem como estou/ Eu já fui o que tu és/ E tu serás o que eu sou"
Confrontar os vivos que passam, apontando-lhes a relativa fragilidade da vida e o peso inevitável da morte é uma marca comum a praticamente todas as alminhas dos portugueses, às milhares de alminhas dispersas pelo país. São frutos de uma época em que se vivia devagar, mas de modo mais intenso, calcorreavam-se caminhos rurais de pé posto, junto aos quais se "plantavam" muitas alminhas, e se votava tempo aos antepassados com o temor reverencial de que a morte seria comungada por todos os vivos. Anjos, santos, Cristo crucificado, a Virgem Maria e o Espírito Santo na forma de pomba são representações habituais nas alminhas, onde nunca se encontra uma criança. "As crianças vão directas para o Céu, são símbolos de pureza e por isso não têm nada para limpar no Purgatório. Ao invés, são frequentes nas alminhas as figuras coroadas, bispos, frades, famílias mais poderosas - e, neste sentido, as alminhas são democráticas, na hora da morte somos todos iguais", observa o historiador António Matias, notando que quando alguém reza reza para a "elevação" de todas as almas do Purgatório e não apenas a de algumas que lhes sejam mais próximas ou queridas.
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