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Re: [Archport] ORDEM DOS ARQUEÓLOGOS:SIM OU NÃO?

To :   Alexandre Monteiro <no.arame@gmail.com>
Subject :   Re: [Archport] ORDEM DOS ARQUEÓLOGOS:SIM OU NÃO?
From :   Gonçalo Leite Velho <gonvelho@ipt.pt>
Date :   Fri, 12 Mar 2010 21:59:54 +0000

Caro Alexandre

Agradeço a forma como endereçou estas questões, por forma a clarificar. Vou então tentar responder, sendo que a determinada altura terei de me alongar um pouco, de modo a poder informar sobretudo os colegas que nos lêem e que se encontram no regime de prestação de serviços (recibos verdes), o que poderá não ser naturalmente o seu caso (não percebi bem qual era o seu caso, sendo que segundo entendi trabalha pro bono, correcto?):

1) Somos já vários a demonstrar a vontade de criação de um Sindicato e a alertar para os perigos da criação de uma Ordem. Na sociedade portuguesa existem muitas outras pessoas a alertar para os mesmo perigos (tanto que se alterou a legislação).
Não se trata de uma questão de co-existência. Trata-se de não abrir caminho a um erro, que não só não resolve os problemas da Arqueologia, como poderá mesmo agravá-los.
A luta contra a proposta da criação de uma Ordem não implica a exclusão de ninguém, antes pelo contrário. Não creio que no caso possamos comparar, combater uma ideia de excluir pessoas e excluir pessoas com base numa ideia.

2) Não creio que a discussão não esteja a ser realizada perante uma escolha democrática. A democracia é feita do movimento associativo, da sua pluralidade e da sua abertura. A Arqueologia é tão mais vibrante quanto mais forem as suas associações. Eu sou sócio de muitas delas (já ajudei a fundar algumas) e acredito no associativismo como base fundamental da democracia. É essa crença na democracia e na inclusão que me fazem rejeitar o corporativismo. Uma Ordem não é uma associação qualquer, é uma organização corporativa, com tudo o que isso acarreta.

3) Não percebi, porque se diz que não aufere remuneração isso significa que trabalha pro bono. Se é o caso passe directamente para o fim deste ponto, onde abordo a questão.
Vejamos no entanto os trabalhadores independentes, que auferem de remuneração por via de regime de prestação de serviços. Esta é uma forma legal de trabalho que até há poucos anos atrás era característica das chamadas profissões liberais. Este era também o modo legal de auferir de remunerações por trabalhos pontuais. Contudo nos últimos anos, temos vindo a assistir a uma deturpação deste princípio, por via da tão proclamada flexibilização do mercado de trabalho. Esta tem vindo a prejudicar não só os trabalhadores, como o país em geral.
Muitas empresas contratam hoje trabalhadores, em regime de prestação de serviços, para suprir as suas necessidades temporárias. Ora para essas situações, a lei 7/2009 (Revisão do Código do Trabalho) no artigo 140º, aponta como solução o contrato a tempo certo. Tal é o caso por exemplo de situações de:

"e) Actividade sazonal ou outra cujo ciclo anual de produção apresente irregularidades decorrentes da natureza estrutural do respectivo mercado, incluindo o abastecimento de matéria-prima;

f) Acréscimo excepcional de actividade da empresa;

g) Execução de tarefa ocasional ou serviço determinado precisamente definido e não duradouro;

h) Execução de obra, projecto ou outra actividade definida e temporária, incluindo a execução, direcção ou fiscalização de trabalhos de construção civil, obras públicas, montagens e reparações industriais, em regime de empreitada ou em administração directa, bem como os respectivos projectos ou outra actividade complementar de controlo e acompanhamento."

Portanto, temos aqui muitas casos, que se aplicam em Arqueologia, nos quais se deviam celebrar contratos de trabalho a termo  certo. Há uma diferença fundamental entre um contrato de trabalho a termo certo e uma prestação de serviços que assenta na subordinação, ou seja, existe contrato de trabalho quando estivermos perante uma relação subordinada, uma prestação de serviços é efectuada em autonomia. Se for comprovada uma relação de subordinação e não de autonomia (a subordinação pode tomar a forma de obrigação de cumprir horário, receber instruções de serviço, ocupar um posto de trabalho na estrutura produtiva da empresa) então temos uma falsa prestação de serviços, que pode dar azo a um acção legal.
Para além da ilegalidade, esta situação é má para ambos, quer seja para o empregador, quer para o trabalhador. Para o empregador porque passa a não poder contar com um corpo de trabalhadores estável, qualificado, que lhe permite desenvolver um trabalho de qualidade. A precariedade faz também com que os laços de responsabilidade se diluam: quantos não são os casos de trabalhadores que abandonam os trabalhos a meio, que não cumprem com o solicitado, que apresentam pouco brio profissional. É o que acontece quando deixa de haver um pacto de confiança, sob a forma de um contrato de trabalho. As empresas que trabalham deste modo estão projectadas para o curto prazo (logo curta viabilidade), porque a sua capacidade de projectar o futuro é também limitada (vão sobrevivendo).
Para o trabalhador a precariedade significa a incapacidade de poder planear o seu futuro, de poder auferir de direitos fundamentais e a degradação geral das condições de trabalho. Num quadro geral de depressão económica a situação torna-se extremamente grave, pois o fantasma do desemprego é ainda agravado pela falta de protecção social, abrindo assim portas a abusos vários. O Sindicato, dado que tem como seu objectivo defender o direito dos trabalhadores e lutar pela dignificação das condições de trabalho, pode vir a ter aqui um papel fundamental. Um papel que exige uma articulação com a Inspecção Geral do Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social, de modo a poder detectar situações ilegais.
Convém aqui perceber que a origem dos sindicatos se encontra em situações de precariedade e de falta de direitos, existentes no passado (sem contratos, vencimentos pagos ao dia, quando não à hora), e que desde aí se demonstraram como a melhor garantia de defesa dos trabalhadores. Para isso é fundamental a capacidade de luta e mobilização que pode ser conseguida nas acções promovidas pelos sindicatos.
Há na Arqueologia muitas empresas tão precárias como os seus empregados. Tal deriva do imperativo da concorrência. A viabilidade da maior parte destas empresas está ameaçada. Nem um Sindicato, nem uma Ordem, podem combater este quadro por si. A tutela tem aqui responsabilidades directas. O Sindicato pode ajudar a combater as situações ilegais que mencionei acima.
Se é verdade que o número de prestadores de serviços tem vindo a aumentar, tal tem acontecido sobretudo pela precariedade de muitas empresas. Muitas destas situações são falsos recibos verdes. Quem se sujeita a tais práticas... está a sujeitar-se ao atropelo dos seus direitos. Por isso, perante tais propostas, a primeira acção de luta é sem dúvida renunciar e denunciar (e um Sindicato permite que se dê um enquadramento colectivo a tal acção). Perante a questão da sobrevivência, voltamos ao quadro das velhas lutas do sindicato, dos fundos de solidariedade, etc.
A Arqueologia é um trabalho de equipa, que exige conjugação de esforços e um enquadramento laboral colectivo. É importante perceber que modelo de Arqueologia queremos: se um constituído por equipas de trabalho que trabalham em condições dignas, ou se preferimos a precariedade e flexibilidade do vale tudo.
Por fim, existem naturalmente situações legais, nas quais o trabalho em Arqueologia pode dar lugar a uma contratação de prestação de serviços (um trabalho determinado a ser exercido em autonomia, um parecer, direitos de autor de um livro, etc). O Sindicato não pode ajudar estes prestadores de serviços a estabelecer preços mínimos, nem a resolver possíveis soluções de conflito com os clientes, nem a determinar junto dos seus clientes as suas condições de trabalho. Mas atenção, estas são também áreas, que como aqui já foi referido uma Ordem não pode também ajudar. A esse propósito chamo particular atenção para o Artigo 4º da lei 6/2008, pontos 2, 3 e 4.
Caso seja um arqueólogo que trabalha pro bono, ou voluntário amador, deve ter atenção ao modo como uma Ordem pode tentar limitar a sua actividade. Mas quer no caso do Sindicato, como da Ordem pode sempre beneficiar das acções socio-culturais e de formação que sejam promovidas por estas associações.

Espero ter podido ajudar.

Saudações arqueológicas e sindicais,
Gonçalo Leite Velho


No dia 12 de Março de 2010 08:58, Alexandre Monteiro <no.arame@gmail.com> escreveu:
Gonçalo, continuo sem perceber a sua insistência nesta questão, portanto gostava que nos respondesse, claramente, a estas três perguntas:

1) porque é que acha que não podem co-existir uma Ordem e um Sindicato? É que quando afirma que "uma estratégia de exclusão é, no mínimo, perigosa", se reparar bem no que diz, só você é que exclui a Ordem em detrimento de um Sindicato;

2) quando diz que é preciso construir "uma casa aberta, plural, onde a discordância tem lugar, num quadro de democracia, mas onde encontramos o espaço de mobilização, que permita defender os nossos direitos" e depois nos nega qualquer hipótese de escolha democrática, dizendo-nos que "essa casa é o Sindicato dos Arqueólogos", que quer dizer realmente?;

3) eu desenvolvo a minha actividade arqueológica de forma não remunerada há muitos anos, ou seja, não tenho patrão, não tenho qualquer vínculo laboral de espécie alguma (aliás, pago para a desenvolver - pago propinas de mestrado, pago o material de mergulho e de registo, pago as minhas formações específicas, pago as deslocações a congressos, ninguém me remunera o tempo que perco em investigação e publicação, etc.). Se fosse criado um Sindicato, como é que contemplaria o meu caso?




Em 11 de março de 2010 23:49, Gonçalo Leite Velho <gonvelho@ipt.pt> escreveu:

Caros colegas

É importante atentar no que tem vindo a ser dito em relação à lei 6/2008. A Sara Cura mencionou uma questão muito importante, em relação ao modo como a lei fala de associações públicas profissionais e não de Ordens. Ela também apontou a pista para esta mudança, nomeadamente a acção do constitucionalista Vital Moreira.
De um modo honesto, a Maria José de Almeida também referiu alguns dos constrangimentos desta lei, nomeadamente como:

«As associações públicas profissionais estão impedidas de exercer ou
de participar em actividades de natureza sindical ou que tenham a ver
com a regulação das relações económicas ou profissionais dos seus
membros»

Muito mudou em relação à acção possível por parte das associações públicas profissionais. Muitas delas têm vindo a público nos últimos emails. São questões que não se podem ignorar.

Como por certo se lembram, a minha intervenção inicial, a propósito da questão do sindicato, alertava, justamente, para o modo como a questão estava a ser apresentada. Como na altura disse, muitas das vantagens apontadas à Ordem, seriam por certo asseguradas pelo sindicato, contudo a vantagem apontada ao sindicato, nunca seria possível de ser assegurada por uma Ordem.
 
Um leitor atento de Orwell percebe bem o perigo de posturas do género "quatro patas bom, duas patas mau". Uma estratégia de exclusão é, no mínimo, perigosa. Seria mortífera para a Arqueologia. O Sindicato é a casa dos que têm na Arqueologia a sua causa. Uma casa que não se restringe aos licenciados, mestres e doutorados. Os técnicos são também profissionais de Arqueologia. E não é só no campo e na escavação que a Arqueologia se faz. Existem os Museus, os Parques, enfim, um mundo que ultrapassa em muito os limites e barreiras que artificialmente alguns querem erguer.

Construamos por isso esta casa aberta, plural, onde a discordância tem lugar, num quadro de democracia, mas onde encontramos o espaço de mobilização, que permita defender os nossos direitos. Essa casa é o Sindicato dos Arqueólogos.

Saudações arqueológicas e sindicais,
Gonçalo Leite Velho


No dia 10 de Março de 2010 17:59, <presidente@aparqueologos.org> escreveu:

Caros colegas,

Arriscando-me mais uma vez à acusação que me estou a afastar dos
princípios para me fixar na forma, aqui vão mais duas citações da lei
6/2008 a propósito de algumas mensagens recentes:

«As associações públicas profissionais estão impedidas de exercer ou
de participar em actividades de natureza sindical ou que tenham a ver
com a regulação das relações económicas ou profissionais dos seus
membros»

«Em caso algum haverá numerus clausus no acesso à profissão, nem
acreditação, pelas associações públicas profissionais, de cursos
oficialmente reconhecidos»

E, porque parece que não me estou a fazer entender muito bem nas
mensagens que tenho escrito, traduzo:

- uma associação pública profissional NÃO SERVE para regular salários
ou outras questões que se prendam com a relação laboral entre
empregados e empregadores;

- uma associação pública profissional NÃO SERVE para acreditar cursos
superiores.

Repito: mais do que adjectivar ou extremar posições de princípio,
importante é termos consciência do que significa iniciarmos o caminho
de criação de uma «Ordem de Arqueólogos», ou o que lhe quisermos
chamar. De uma forma muito básica, temos que saber responder às
perguntas:

- o que é?
- o que pode fazer?
- o que não pode fazer?
- o que implica o processo de criação?
- o que implica o funcionamento e afirmação?

Só podemos decidir se queremos, ou não, iniciar este caminho em função
das respostas. É isto que estou a tentar dizer há algumas mensagens?
mas se calhar explico-me melhor a falar do que a escrever, pelo que
espero poder continuar esta troca de opiniões no dia 20 no MNA.

Até lá,

Maria José de Almeida
Presidente da Direcção da APA


Quoting sara cura <saracura@portugalmail.pt>:

> Caros colegas,
>
> A propósito do já aqui antecipado debate sobre a viabilidade de criação de
> uma Ordem de Arqueólogos e com manifestações várias de apoio a esta ideia,
> eu estou em sintonia com o Gonçalo Velho e não creio que seja a Ordem a
> estrutura determinante para a «acreditação e afirmação da profissão».
>
> Embora reconheça que é necessária a existência de uma regulamentação de
> determinadas actividades profissionais que não estejam na total dependência
> do estado e que possam ter uma auto-regulação, isso não tem de ser feito só
> por meio da criação de uma Ordem.
>
>  E mesmo depois da Lei 6/2008 que supostamente «visa estabelecer mais
> democraticidade interna, mais transparência na gestão, menos corporativismo
> e menos restrição à liberdade de profissão e à concorrência» (cito Vital
> Moreira), continuo a não ver na criação de uma ordem o caminho mais eficaz
> para a resolução dos nossos problemas.
>
> Não é porque não existe uma Ordem que existe um vazio legal, ou um vazio de
> fiscalização e regulação. O Estado  assume essas competências, e se isso não
> acontece com a eficácia desejada pela classe profissional, temos vários
> mecanismos legais à nossa disposição para o exigir, nomeadamente através de
> um sindicato. De resto, intriga-me que uma Ordem ou qualquer associação
> desvalorize e não reconheça profissionais formados em cursos de ensino
> superior homologados pelo Estado. Uma verificação feita a posteriori é
> questionável, até porque existem sistemas de avaliação do ensino superior. É
> o tal «controlo e limitação da concorrência» que temo.
>
> Certo é que, como referiu a Maria José Almeida, não é «incompatível a
> existência de sindicatos com a regulação da respectiva profissão através de
> associações públicas de profissionais», mas concordo com o Gonçalo Velho
> quando diz que as vantagens (da ordem) apontadas no documento que nos foi
> facultado, são válidas em estruturas sindicais. Assim sendo podemos ter um
> instrumento que contribua efectivamente para a defesa dos interesses dos
> profissionais, da auto-regulação, mas num quadro pluralista de liberdade de
> constituição e inscrição.
>
> Olhando para o panorama actual do exercício da nossa profissão, vejo como
> urgente a criação de uma plataforma que defenda e assegure a dignidade das
> condições de trabalho dos arqueólogos, sobretudo dos mais jovens. Dignas
> condições de trabalho, são imprescindíveis para um digno trabalho (não é só
> a formação que garante a qualidade do exercício da profissão). Isso não tem
> de passar por uma Ordem, cuja criação, na minha opinião, pode correr o risco
> de, neste contexto  de crise global, estreitar as oportunidades
> profissionais futuras dos arqueólogos.
>
> E já agora em jeito de provocação: nãos nos serve de muito a definição das
> fronteiras de uma profissão, se ela não é socialmente reconhecida. Importa,
> portanto, também reflectir sobre o nosso papel na sociedade, porque a meu
> ver a arqueologia não é só dos arqueólogos.
>
> Espero que as minhas  ideias e provocações possam contribuir para um debate
> que é da maior importância. Na verdade, só discutindo amplamente os
> problemas é que se encontram soluções, mesmo  com divergências entre nós o
> diálogo plural é o mais profícuo. Espero ver muitos colegas na discussão
> promovida pela AAP e APA.
>
> Abraços a todos,
>
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