Lista archport

Mensagem

Re: [Archport] Acerca de ''Arqueologando'' e do ''património como bem de consumo.

To :   joão Pereira <trainzeiro@gmail.com>
Subject :   Re: [Archport] Acerca de ''Arqueologando'' e do ''património como bem de consumo.
From :   Manuel de Castro Nunes <arteminvenite@gmail.com>
Date :   Mon, 10 Mar 2014 15:51:34 +0000

Caro Alexandre Monteiro.

 

Eu estava já na expectativa de que ninguém respondesse directamente às questões que fui levantando. Que me perdoe o Luís Simões Luís por de novo o referir, estava já convicto de que todos transfeririam as suas respostas para o Luís Luís.

Constato, gratificado, que ainda existe o Alexandre Monteiro, que com razão ou sem ela, sai sempre em abono das suas convicções sem inibições.

Ora, eu entendo muito bem todo o raciocínio que subjaz à posição do Alexandre Monteiro, embora, no caso, tenha que fazer alguns comentários à sua forma de exposição, que enferma, desde logo, de uma profunda contradição insólita.

Alexandre Monteiro inicia a sua intervenção citando Laurent Olivier.

‘’O bem herdado do passado da humanidade é não só inalienável mas fundamentalmente colectivo.’’

Laurent Olivier esclarece depois o seu propósito: ‘’O património arqueológico pertence a todos e a ninguém.’’

O bem arqueológico? E os outros?

Porque razão o património arqueológico está ao abrigo de cláusulas de excepção no que respeita à posse ou propriedade? O que é o património arqueológico a que se refere Laurent Olivier?

Para Alexandre Monteiro parece, tendo em conta o prosseguimento da sua intervenção, que Laurent Olivier se refere restritamente ao património móvel, os denominados artefactos, ‘’objectos’’ ou ‘’tesouros’’.

Eu proporia que do património arqueológico fazem parte também os sítios arqueológicos. Mas estendo o domínio que a designação bode abarcar ou alcançar aos arqueólogos e ao património socialmente adquirido, dito imaterial, pela acumulação do seu trabalho, dos arqueólogos, pelo menos de uma parte proporcional ao investimento social no suporte à sua actividade.

 

Para situar a questão deixo a ligação para o texto de Laurent Olivier em causa.

 

file:///C:/Documents%20and%20Settings/JCN/Os%20meus%20documentos/Downloads/42323-60437-3-PB.pdf

 

Eu não posso deduzir dos escritos de Laurent Olivier qual o seu alinhamento ideológico no domínio da sua inserção integral na sociedade global ou circunvizinha.

Apenas posso de duzir que Laurent Olivier é, no que respeita à posse, propriedade e uso do património arqueológico, socialista ou comunista.

Pessoalmente, nada tenho a objectar, tudo bem. Só teria que interrogar, se fosse o caso, as razões porque o socialismo ou comunismo de Laurent Olivier se restringe ao património arqueológico.

Mas fico preocupado ao constatar que o socialismo ou comunismo de Alexandre Monteiro se restringe ao património arqueológico móvel que é vendido no mercado, pela Sotheby’s, pela Christie’s ‘’et alii’’. Sublinho ‘’e outros’’.

 

O Alexandre Monteiro vai perdoar-me mas, como, como ele, também não sinto qualquer inibição, nem sei porque haveria de sentir, pergunto-lhe directamente, como se estivéssemos frente a frente, se a sua resposta pretende aludir, como forma de reforço ou de consolidação da razão, a uma tal ‘’colecção egípcia’’ que tem servido com toda a oportunidade e conveniência uma certa corrente que não tem querido, pura e simplesmente, que algumas das questões mais veementes que tenho colocado sejam discretamente silenciadas.

É que, se for o caso, vamos então abordar explicitamente e sem inibições essa matéria. Porque ela seria um excelente suporte para circunscrever várias questões que o Alexandre Monteiro levanta e tem levantado.

Por mim, seria bem oportuno e bem o tenho tentado.

 

Aguardando pois a resposta do Alexandre Monteiro, prossigo.

Não vem ao caso aqui espraiarmo-nos muito com a matéria, mas Adam Smith, no que se refere à matéria abordada na sua citação, pouco disse ou escreveu de novo. Mas, sem dúvida, outros a aprofundaram muito mais. Hoje em dia, até está em voga o culto da benevolência do ‘’carniceiro’’.

É o caso do património arqueológico, que pode e não pode ser objecto de mercantilização. Dependendo da benevolência do ‘’carniceiro’’.

Pruridos? Se o ‘’carniceiro’’ for benevolente, qual é o problema?

 

Mas o Alexandre Monteiro não entendeu bem as questões que tenho aqui levantado. Pelo que lhe rogo que clarifique, se entender oportuno, as seguintes questões.

 

1. O património arqueológico mercantilizado a que me tenho referido não é exclusivamente aquele que pode ser vendido em leilões de bens mais ou menos móveis.

Os sítios onde eles estão ou estiveram em contexto também são património arqueológico.

Ainda ninguém fez uma avaliação aceitável que nos permita identificar os beneficiários do Alqueva. Sabemos que um deles, José Roquete, viu recentemente o seu propósito gorado por estritas razões de avaliação de sustentabilidade financeira.

Mas diria que os beneficiários do Alqueva mercantilizaram, conjuntamente com os arqueólogos e as empresas de arqueologia os sítios arqueológicos.

Resta saber quem foram.

2. Em Portugal ainda não está consignada a propriedade privada sobre a totalidade dos bens, sejam de que natureza for. Também não é muito claro o regime de propriedade sobre os bens móveis arqueológicos, que de resto estão por definir. Estão por definir de vários de pontos de vista.

3. Os bens provenientes de procura e exumação deliberada estão, desde cerca de 1999, sob alçada do Estado e a sua colheita sob alçada criminal. De resto, como está sob alçada criminal o dano ou dolo sobre os bens imóveis, que não são nem ninguém reclama para a propriedade pública e podem ser vendidos e comprados.

4. Criou-se em Portugal um mau hábito. O de confundir os assuntos e negócios públicos com os privados, no que respeita ao tratamento e à invocação da tutela pública.

Por exemplo, o contrato entre um ‘’dono de obra’’ e uma empresa de arqueologia é um contrato e um negócio do domínio privado. A venda pública de um alegado objecto arqueológico em regime de propriedade privada é um negócio público da tutela pública.

Espero que entenda o que quero dizer.

5. De modo que o que sempre esteve em causa é saber o que significa o vínculo público sobre o património e quem pode reclamar o seu uso para, através da sua mercantilização usufruir do estatuto de ‘’fornecedor’’ cultural remetendo os restantes para o estatuto de ‘’consumidor’’ cultural.

 

Responderei depois ao João Paulo acerca da proletarização. E de tudo o que associo ao tema da proletarização.

 

Uma Abraço.

 

Manuel.



No dia 10 de Março de 2014 às 13:47, joão Pereira <trainzeiro@gmail.com> escreveu:
Não é por ninguém levantar uma sobrancelha que a coisa esteja bem.


No dia 10 de Março de 2014 às 12:57, Alexandre Monteiro <no.arame@gmail.com> escreveu:

 Não vejo o porquê dos pruridos relativamente à mercantilização do património.

Nem sei porque crê o Laurent Olivier que "le bien hérité du passé de
l'humanité est non seulement inaliénable, mais aussi fondamentalement
collectif: le patrimoine archéologique appartient à tous et à personne
en particulier".

É que tal não é simplesmente verdade: há bens arqueológicos que saem
dos sítios onde estão em contexto e que, passando por leilões, passam
a pertencer a colecionadores, a investidores, aos "mercados". Há
vários anos já que existem empresas portuguesas que vendem
regularmente, em leilões da Christie's e da Sotheby's, artefactos
arqueológicos provenientes de sítios arqueológicos e nunca ninguém
levantou uma sobrancelha que fosse...

Talvez porque em Portugal ainda nos ofusquemos pela beleza dos
mercados: há procura, há oferta e há um fornecedor e tudo funciona de
forma perfeita.

Mas, se a mão pode ser invísivel, por detrás das suas acções há sempre
uma intenção: "It is not from the benevolence of the butcher, the
brewer, or the baker, that we can expect our dinner, but from their
regard to their own interest" (Adam Smith,The Wealth of Nations,
1776).

É claro que nesta, como noutras matérias, os "mercados" são mais uma
boa desculpa para convencer quem frui pouco ou nada do seu património
colectivo de que é justo um certo alguém ficar com parte dele, a mais
interessante ou a mais vistosa, como sua propriedade pessoal e
privada. Há uns anos atrás perguntaram ao Helmut Schmidt se ele
conhecia os mercados. Ele respondeu, conheço sim senhor e já jantei
com alguns.
_______________________________________________
Archport mailing list
Archport@ci.uc.pt
http://ml.ci.uc.pt/mailman/listinfo/archport


_______________________________________________
Archport mailing list
Archport@ci.uc.pt
http://ml.ci.uc.pt/mailman/listinfo/archport




--
Manuel de Castro Nunes

Mensagem anterior por data: Re: [Archport] Acerca de ''Arqueologando'' e do ''património como bem de consumo. Próxima mensagem por data: [Archport] Os recentes achados arqueológicos no Convento do Carmo em Lisboa
Mensagem anterior por assunto: Re: [Archport] Acerca de ''Arqueologando'' e do ''património como bem de consumo. Próxima mensagem por assunto: [Archport] Acerca de acompanhamento invisível